Finalmente, o punk.
Parte 1 de 2 - de três, provavelmente. De uma discussão que começou aqui: "die, industry, die!".
Primeiro e mais que tudo, se por “punk” ainda te vem à cabeça o estereótipo do mohawk e do cabedal podes parar por aqui. Já o dissemos anteriormente:
Entendemos a cultura punk como algo porventura mais abrangente que o grafismo do site punk.pt parece querer assentir (mas confesso, não li boi dos seus artigos) * O punk é-nos uma vertente particular, complexa, e maleável. Os punks não estão mortos nem conservados em formol. Há-os de várias espécies e feitios, há punks demasiado punks para serem punks: Darwin no seu melhor.
In o Real Nós, 2014
* Correcção, lemos um dos seus artigos e já lá iremos.
Punk: política e música. Uma definição mais completa deverá estar ao virar da esquina agora que a “arqueologia do punk” é uma área legitima à academia – e podem contar com ela para engrossar qualquer definição que lhe apontes. Mas escalpelizar punk (mohawk?, escalpelizar? mi-funny!) não faz parte dos nossos propósitos fora a chamada de atenção anterior para não te restringires à nostalgia de tempos idos ou o imaginário fashion-chick de cadeias de pronto-a-vestir.
Política e música, punk: é toda a definição que precisas para base de trabalho. Sem contracorrente, sem subversão, não é punk. É reguila. É artsy-fartsy. Sem música não há identidade, não há pertença, não há comunidade.
Os Zines.
A relação zine/punk também damos por adquirida. E neste ponto remetemos sem reservas para o artigo do punk.pt que lemos - tantas horas em cima da xerox não deixam de cobrar algum saudosismo revivalista. Claro que também podes ler inhouse n’OS POSITIVOS aqui 2011 e aqui 2014.
O nosso único reparo:
A tónica deste texto prendeu-se com a abordagem dos fanzines na emergência e consolidação da cena punk portuguesa, desde finais dos anos 70 até à atualidade
in “Culturas de resistência e média alternativos” de Paula Guerra e Pedro Quintela
- sendo que essa actualidade já na altura requeria alguma actualização quando a única referência que faz às novas tecnologias se resume ao "o fanzine assume-se como uma espécie de antecessor artesanal das redes sociais contemporâneas" e o ainda mais despachado "o surgimento do computador veio refinar a precisão técnica e a rapidez de produção dos fanzines". A relação do xerox / desktop publishing está para o fanzine como o motor a vapor e o motor de combustão estão para os veículos motorizados: é relevante. E aquilo das redes sociais? A propósito de um objecto que divide a sua razão de ser entre a expressão pessoal e o reaching out a like-minded people, redes sociais é capaz de ter o seu quê a aprofundar.
Do dito, o punk foi bom para os fanzines, os fanzines foram bons para o punk:
a associação do fanzine ao punk ocasionou a visibilidade do fanzine enquanto meio de comunicação
narrando com regularidade a cena punk e encorajando os seus leitores a ‘fazerem parte’, os fanzines contribuíram inteiramente para o desenvolvimento e dinâmica do movimento
Ficamos felizes. Mas totalmente irrelevante para o caso não tivesse essa relação ocorrido nos termos que ocorreu. O punk e fanzine cruzam-se na ética:
O punk não era um estilo musical, ou pelo menos não devia ter sido… era mais uma espécie de atitude ‘fá-lo tu mesmo—qualquer um consegue fazê-lo’
orientação gráfica declaradamente DIY, assente numa mistura de técnicas de cut-and-paste, recorte, desenho/ilustração, textos escritos à mão e datilografados, manipulação de fotografias
- e nas consequências:
a “explosão” de fanzines punk foi, aliás, uma das principais responsáveis pelo incremento dos média alternativos: imprensa local, rádios livres, televisões “piratas”
estes artefactos desenvolvem-se num quadro relacional de concretização de gostos, de afinidades, de saberes, de pertenças sociais, políticas, ideológicas, culturais, estilos de vida e musicais
Importam-nos essas alternativas, importam-nos também essa pertença social e cultural. Importa-nos que faças só mais este esforço de concentração enquanto introduzimos o terceiro ingrediente à receita antes de misturarmos tudo. Enter digital.
O Digital
Provavelmente teremos que abrir em futura instalação um postscriptum a esta série de textos sobre webcomics com uma pequena justificação aOS POSITIVOS: quando nos acabares de ler serás assaltado por um pequeno ich do clássico “do as I say, not what I do” ao aperceberes-te que somos os primeiros a quebrar as nossas próprias intenções. Há uma razão para tudo e vais ter que acreditar em nós nesse ponto por agora. Case-in-point: somos primitivistas por instinto, e segue-se uma exposição da importância do digital, em digital. Wild dude, we’re tricky!
Conscientes que escolhemos um ponto de entrada algo escorregadio – um passo em falso e caímos em tópicos tão complexos como desnecessários -, começamos por aquele chavão a que chamam “cibercultura”, e teremos o cuidado expresso de evitar a todo o custo entrar naquele outro chavão que se chama –yep!- “cultura”. Um pequeno apanhado de bullets da Wikipedia é a soma de tudo o que nos importa que retenhas desta para a nossa lógica – don’t quit on us now! Seguem-se:
- Is culture mediated by computer screens;
- Relies heavily on the notion of information and knowledge exchange;
- Depends on the ability to manipulate tools to a degree not present in other forms of culture
- Multiplies the number of eyeballs on a given problem, beyond that which would be possible using traditional means
- Is a "cognitive and social culture, not a geographic one"
Em resumo:
Thus, cyberculture can be generally defined as the set of technologies (material and intellectual), practices, attitudes, modes of thought, and values that developed with cyberspace.
O nosso resumo para teen-no-recreio-do-liceu-com-telemóvel-na-mão é: “é uma cena”. Vais ter que acreditar em nós novamente - se vamos problematizar cultura é toda uma outra série de artigos em cima destes, fica para a tese... E que cena é essa? Na verdade, apenas uma rosa com outro nome :) –and insert shit storm!-. No que nos importa, velhos hábitos com novas roupas: a evolução do digital transforma zines em blogs pelas razões de sempre,
New information technologies, network communication and new digital territories clearly came (to/can?) reconfigure the DIY concepts and practices to a new paradigma
in KISMIF Book of abstracts 2016
E podíamos ter retirado uma citação similar de um milhão de sítios mas escolhemos fazê-lo do Livro dos Abstractos do KISMIF 2016 a propósito do digital porque a ocasião presta-se à oportunidade. OS POSITIVOS, oportunistas ocasionais. Somos primitivistas no core, e segue-se a crítica aos Luddites de serviço: ain’t we a stinker?
Se vos é pacífico que os teens têm hoje um acesso a ferramentas e canais que lhes permitem rivalizar com conglomerados de media absolutamente abismais na produção e divulgação perante uma audiência de milhões sem os custos proibitivos e monopolizadores de décadas passadas, é-nos estranho continuar a encontrar quase 20 anos depois de discutirmos estes assuntos pela primeira vez as opiniões de puristas do DIY que se barricam no processo em si como se este pudesse ser independente da sua finalidade. Artsy-fartsy no seu pior.
No abstracto referido acima -2016 senhores!-, um artigo intitulado “How to resist the new culture of digital and online music diffusion – DIY strategies of music production and distribution”. Como resistir? Ó Paula, se estamos nisto para ganhar devíamos estar a discutir a melhor forma de no apropriarmos da nova cultura digital e dos seus meios de produção e distribuição, não fugir deles. Lá estamos nós na convenção do motor a vapor a discutir as suas virtudes e superioridade, quando todos neste lobby de hotel chegaram aqui de carro. Citamos do abstract para arquivo. 2016 senhores, 2016:
In the last decade the forms of production and distribution of recorded music have undergone sweeping changes as a consequence of the new digital systems of audio and video recording, infrastructures and broadcast technologies through the World Wide Web. Simultaneously, we witnessed the revival of vinyl editions and the survival of CD and tapes as material supports to the registration and distribution of recorded music. The paper seeks to discuss the persistence of the traditional media phonograms as possible resistance phenomena against the overwhelming culture of digital cultural content diffusion and convergence of audiovisual productions. We address the case of the production of different variants of punk music in Portugal in order to debate the present independent phonographic edition and its resistance to digital production and distribution. Grounding our analysis on the large data set produced by the team of the KISMIF research project, the discussion seeks to relate the relevance of punk musical performance and the importance of local music scenes, where a continuous update of social networks takes place, to the DIY strategies of music diffusion. Those networks constitute unique devices for the non-capitalist dissemination and distribution of sound recordings (records, cassettes and CD), able to nourish the main philosophy of resistance to the new spirit of capitalism running through the phenomenon of digital music distribution and the global network (WWW).
É-nos difícil sumarizar à academia nos seus próprios termos a extensão das nossas objecções, particularmente porque teríamos de nos escusar à sociologia e fazê-lo por via da mais reles das culturas: a popular. Sem entrarmos em pós-estruturalismos semióticos não o debatemos mas concluímos: pó caralho, senhores, para-o-caralho.
Para efeitos da presente dramatização escolhemos ignorar que o abstract imediatamente a seguir ao citado tratava sobre novas tecnologias e o impacto construtivo dessas em “all production processes, distribution, circulation, divulgation and consumption” na cena brasileira... sshhh - faz de conta que não viste nada.
Já tivemos esta conversa há duas décadas atrás a propósito dos fanzines –a música online estava muito-muito longe de se vislumbrar sequer no horizonte. Curiosamente, com o exemplo de música. Os puristas recusaram –então- a web: porque a cassete é que é punk; vinil, supremo; CD é porco-capitalista. Então, como agora, continuamos a insistir na mesma regra: importa o que dizes, ou como o dizes? Importam os dois, mas aqui nOS POSITIVOS tendemos para o primeiro em detrimento do segundo onde chocam –caso não tivessem reparado. Entre estes luddie-briados, importa o segundo nem que para isso tenhas de ficar calado. Mas, comin’ full circle here, ficar calado não é bem o punk que defendemos.
A música é a linguagem universal do punk, respondendo desta, ao punk do catálogo, ao punk da convenção, ao punk do formol, ao punk do revivalismo de uma época dourada imaginada: to bite tha hand that feeds, that’s punk.
and when I finally got to work today, I ate my Subway sandwich, and I drank my Coca-Cola Classic, and then I ate my Sunchips and I thought about the weekend when I'd fill up my Ford van with Mobil brand gas and drive to the Clear Channel venue and I'd drink myself a Budweiser and play my Fender guitar through my Fender amplifier and tell the kids with a straight face through a Shure microphone and JBL speakers that corporate rock is for suckers - yeah, right
in Bomb the Music Industry - e podes ouvir toda a música aqui. Porque a podes descarregar gratuitamente e ouvir quando te apetece, onde te apetece. Crazy, hem?
Coca-cola? Pepsi! Música? Novas tecnologias? DIY? E ao volante de uma Ford van se por Ford van entendes um BMW sedan? Damos-te doze minutos, depois volta confiante que o punk já aprendeu mais alguns acordes: este pequeno doc-ó-tube é tudo o que precisas para te convencer que as ferramentas são utensílios. Usa-as, com intencionalidade. Dependendo dessa intencionalidade, u-be-punk. Demora os 12 minutos, não skipes a coisa nem faças fastforward - punk não é défice de atenção. Teens, mostrem aos cotas como estão velhos.
E com reforço de citação alheia, ainda na base da música –sacámos de um sítio qualquer, só queríamos mesmo uma data recente, este é de 2014:
The analogue retroism of recent years, which may once have been a bulwark against the oncoming digital technocracy, is now buckling under the sheer pressure of the ease and ubiquity offered by the latter. It can no longer be fought through countercultural romanticism—not using the internet is as good as not breathing—and now artists are going with the flow, especially those who have no nostalgia for the older ways.
in The online underground: A new kind of punk? 2014
Com o digital mudam-se fronteiras e redesenham-se relações. O mundo não vai esperar por ti –o primitivismo em nós a falar agora…- e se não te adaptas ficas fechado na reserva de animais exóticos onde te cabe o papel de pitoresco figurante a dar cor à flora da multiculturalidade para turista ver. De volta ao subversivo em nós: precisamos de novos punks com novas mentalidades, punks que recusem a cerca onde os querem meter. E, sobretudo, punks que não ajudem a fazer a porra do curral.
Do mesmo artigo anterior:
This isn't the end of the story. There's still the matter of who owns the software and hardware on which the online underground runs, and what they want to do with it.
O velho punk enterra a cabeça na areia e espera combater o capitalismo com paus e pedras. Ou cassetes. Não é uma estratégia que nos mova. Não somos pela negação, mas pela subversão. Subvertemos. Somos pragmáticos, queremos ownar o software e hardware - e se acompanhas a evolução da tecnologia sabes que a balança está irrequieta: precisamos de a pender para o lado certo. E somos punks: não queremos apenas substituir o ownership da tech: queremos usa-la com outros propósitos.
Do "Free Culture - how big media uses technology and law to lock down culure and control creativity”, circa-2004-por-amor-de-deus!:
"Internet software has no capacity to punish. It doesn’t affect people who aren’t online (and only a tiny minority of the world population is). And if you don’t like the Internet’s system, you can always flip off the modem" (disse o) Pogue (que) might have been right in 1999—I’m skeptical, but maybe. But even if he was right then, the point is not right now (...) There is no switch that will insulate us from the Internet’s effect.
Lawrence Lessig in "Free Culture - how big media uses technology and law to lock down culure and control creativity" 2004
Tendo que resumir: se só fazes zines em papel, badamerda para ti. Conseguimos perdoar o cona das belas artes porque o seu intento é inútil por definição. Não conseguimos perdoar o punk que quer pegar fogo ao mundo mas só se não incomodar ninguém e lhe fizerem o jeitinho.
The bottom line for us was what’s the difference between a Facebook group and a fanzine?
in DIY Digital: First Steps to Selling Out 27 abril 2015
And on that happy note we’ll come back with punk pt2. Up next: punx + digital + comics!
E tu? Vais ficar para trás preso aos old ways? Quanto disso é comodismo?
"we all came to watch your world as it burns"