A propósito dos dois tópicos: a ignorância, a contradição.
I
whats on ur mind?
Ver o carácter nefasto das "redes sociais" e o triunfo da ignorância nas novas tecnologias é uma posição cheia de equívocos, tanto mais que poupa os media tradicionais a uma crítica necessária.
in "Nova ignorância, velha contradição" 6 dez 2016
Primeiro, óbvio, e mais ao caso: a correcção de António Guerreiro sobre as suas próprias opiniões obriga-nos a que façamos um registo do seu mea culpa para que não nos acusem de qualquer insensibilidade ao gesto. Se encontramos nos seus textos ecos de temas que nos ocupam por estas bandas, também não temos sido cerimoniosos em demonstrar quando discordamos de algumas intervenções deste autor, e hoje o cronista reenquadra justamente os escritos daquele outro autor que tivemos igualmente a oportunidade de não-cerimoniosamente comentar mais recentemente. Mercê de uma felicidade de coincidências fá-lo expondo uma conclusão que, longe de o ser, é certamente a orientação necessária para discernir o caminho que falta percorrer.
O assunto é pertinente e de uma grande actualidade, mas é muito imprudente – uma imprudência que também já cometi – tratá-lo nas páginas de um jornal: porque os jornais incorporaram a lógica dos media sociais e deixaram de ser um lugar de onde se possa, com legitimidade, criticá-los.
in "Nova ignorância, velha contradição" 6 dez 2016
O "equívoco" de Pacheco Pereira - "indivíduo detentor de saber e reconhecido [que] nessa condição faz [uso] da sua razão, perante um público letrado, livre de tutelas, adulto, que 'ousa saber' e criticar" - é "quer[er] manter-se firme no posto que ocupa e onde encontra a sua legitimidade", e nessa mesma capacidade "excluir-se do processo da 'nova ignorância', e denunciá-la" quando "participa activamente nos meios que a produzem". A citação anterior termina em interrogação, uma pergunta que em consequência AG redireciona a si mesmo, chegando à tal (in)conclusão de crónica que novamente ecoa posições comuns para com OS POSITIVOS:
Não tenho tais ilusões e estou consciente da contradição a que me exponho semanalmente
Nota rápida antes de concluirmos António Guerreiro, Pacheco Pereira e aquilo das elites: tropeçamos numa crónica mais antiga de AG com referências a PP sobre os mesmos temas, ainda que em moldes diferentes. Não conseguimos confirmar o original, mas aqui fica um mashup:
Numa das suas últimas crónica, no "Público", J. Pacheco Pereira evocava "os intelectuais" (…) O facto de evocar a obrigação do antigo intelectual (…) mostra que se tornou inevitável, em certas circunstâncias, revisitar esta figura depositada nas caves da história, quando as circunstâncias reclamam mais do que escritores, artistas e filósofos que se limitam a gerir as regras autónomas do seu próprio campo.
in "Era uma vez os intelectuais" 21 abril 2013
Aquilo do artsy-farsty, "este território inofensivo luta apenas para se manter e reproduzir":
[Sobre a "decadência dos intelectuais"] estes passaram de legisladores modernos a intérpretes pós-modernos, e a elite intelectual é hoje um grupo social que se ocupa preferencialmente de si ou, na melhor das hipóteses, do sector específico a que pertence. Assim, a cultura já não pode ter uma função crítica relativamente à sociedade, pondo em confronto valores e modos de vida, na medida em que se tornou um mero sector ‘produtivo’, rendido às argúcias teológicas da mercadoria como fetiche.
in "Era uma vez os intelectuais" 21 abril 2013
E aquilo do $$$ também, portanto.
Nota extra para futura arqueologia sócio-jornalística: a troca de galhardetes entre ambos é pacífica. PP sobre AG, daquilo que conseguimos juntar:
No jornalismo cultural há excepções que leio sempre, como é o caso do António Guerreiro.
in "Somos aquilo que juntamos" 19 nov 2016
Igualmente digna de cite, para consumo interno e gáudio de hooligans e vândalos que nos lêem:
Todos os ganhos e conquistas nos domínios do conhecimento têm como contrapartida ganhos inauditos da ignorância, e todos os cumes da cultura engendraram um novo obscurantismo
in "Nova ignorância, velha contradição" 6 dez 2016
OS POSITIVOS: cumprimos a quota-parte que nos cabe desse processo.
Continuando nas "relações de produção (para falar uma linguagem marxista)" e intelectuais:
Os meios que produzem a ignorância (...) podem ser agora outros, mais numerosos, mais sofisticados e mais massificados, mas longa é a lista de nomes com que, desde há mais de um século, é designada a ignorância e a degeneração da cultura.
in "Nova ignorância, velha contradição" 6 dez 2016
"Tragédia da cultura", "a crise da cultura", "semi-cultura", "o desastre educativo global". Todos eles, senhores, e esse último em cima. E acresce:
Também não é novo querer combatê-la com os instrumentos da crítica da ideologia.
in "Nova ignorância, velha contradição" 6 dez 2016
De elitismos, cultura e falta dela estamos conversados. Aqueles que partilham do nosso percurso cedo notaram na discrepância entre uma camada normativa que coage a realidade e sobre ela as práticas que contradizem esses mesmos discursos. Por seu lado os nossos intelectuais já escreveram vastos tratados e ensaios e análises e sínteses e - se leste o excerto acima – recolheram-se às suas bibliotecas. Nós habituámos-nos a só depender do que conseguimos alcançar na primeira pessoa e que a acção directa gets the goods. E políticos e intelectuais sintonizam-se rapidamente na mesma frequência quando o fazemos: "populismo".
Terceiro e quarto elementos à equação: tecnologias e ignorância.
É a nossa deixa para o segundo tópico de hoje: putas nazis.
II
Um dos artefactos culturais que mais influência teve na genealogia do folclore popular da nossa tribo - e que tanta iconografia legou à estética dos nossos zines (*), discos, posters, cartazes, flyers, patches, qualquer suporte visual que vos ocorra -é hoje reclamado pelo pior dos grunhos: nazis.
* Culpados: também o fizemos convencidos que estávamos a ser terrivelmente originais.
E essa apropriação de uma referência pop que nos é tão cara surge no rescaldo da combinação explosiva de ignorância, tecnologia e o pior elitismo intelectual de todos: o nosso.
Falamos de um dos filmes "série B" –e, não será essa sua condição que o tornou mais facilmente aceitável entre nós?- da década de oitenta mais memoráveis de John Carpenter: "Eles Vivem".
Released in 1988, the tail-end of the Reagan era, and very clearly targeted at the capitalism-crazed boomer-bougies who’d eagerly exchanged their ideology for luxury
in "Bigots Are Trying to Ruin They Live, Because of Course They Are" 5 jan 2017
A mensagem do filme pouco devia a elegâncias de subtileza e à data assimilámo-la sem resistências porque não a procurámos: foi ela que se aproximou do nosso cânone. Hoje, porque os nossos punx se escusam às redes e novas tecnologias apesar dos nossos apelos, outros – e logo quais – ocupam o vazio e roubam-nos de uma parte substancial da nossa entidade.
O seu criador teve a necessidade de vir a público recordar o intuito e contexto do filme -
THEY LIVE is about yuppies and unrestrained capitalism. It has nothing to do with Jewish control of the world, which is slander and a lie.
— John Carpenter (@TheHorrorMaster) 4 de janeiro de 2017
- e em jeito de aclarações –António Guerreiro, John Carpenter -, e sobre culturas em decadência, agora nós: continuamos seguros sobre todos "eles", mas será altura de nos olharmos ao espelho e considerarmos de quem é aquele reflexo.