Não, o título não é nosso.
Sim, gostávamos de o reclamar nosso.
Lemos hoje pela Sara Figueiredo Costa sobre uma exposição de "banda desenhada europeia contemporânea" em Madrid.
No gesto de ler o primeiro parágrafo desistimos imediatamente de avançar além.
Mas fizemos o esforço. Condenados que estamos a partilhar cela com esses artistas – funny?-, arriscamos a leitura: ainda que se acuse vanguarda como “um dos termos mais utilizados", imediatamente o complementam com um descritivo que nos invade pelo canto do olho num último fugaz instante:
Fanzines, livros, cartazes e pequenas publicações de difícil classificação (...) nem sempre reconhecidos pelo radar da imprensa cultural
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
- que nos sugere a possibilidade de alguma literatura consequente entre os demais: foi o uso na mesma frase de fanzine, imprensa e cultura. E entre os demais,
Edição alternativa, banda desenhada independente ou outros termos que falham sempre na sua descrição dos objectos, mesmo que sejam amplamente reconhecidos pela comunidade de produtores e leitores destas publicações.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Enquanto produtor e leitor de certo tipo de publicações hesitamos ainda se nos reconhecemos em tal descrição e mais duvidamos se seriamos aceites entre tal companhia – não lhes fossemos tão adversos-, mas Sara assegura-nos que são inclusivos:
E talvez comunidade seja um bom termo para enquadrar o que se passa num meio tão plural e visualmente variado.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
De comunidades estamos nós em alta: espreitemos, então.
Une-os, tal como aos restantes colectivos presentes na exposição, um modo comum de se dedicarem aos objectos editoriais que criam - investindo dinheiro do próprio bolso sem que um retorno significativo seja esperado, de distribuírem as suas publicações, com recurso à internet e à presença em feiras e festivais, de partilharem práticas e trabalhos com vários outros colectivos, sem que a distância geográfica seja relevante.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Destaques nossos. Smack dab in the middle das nossas teses em webcomics et punk, complementado com um igualmente genérico mas promissor:
Percebe-se, ao longo desta exposição, que é neste modo de trabalhar e partilhar em rede que está parte considerável do valor, artístico e comunicativo, desta banda desenhada.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Devidamente complementado com dois reforços:
…são a prova de que as fronteiras geográficas se diluem muito quando falamos de um meio tão eminentemente visual como o da banda desenhada
A democratização do acesso aos meios de produção editorial, assegurada pela impressão digital e pelo número cada vez maior de pessoas que se dedicam a este trabalho sem que essa seja a sua fonte de subsistência, associada a um regresso às técnicas de impressão tradicionais, cada vez mais procuradas por quem quer fazer publicações de curta tiragem sem depender de terceiros
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
E um arrematar final:
A maioria das publicações feitas por estes colectivos não se encontrarão numa livraria generalista, e talvez também seja difícil encontrá-las em livrarias especializadas em banda desenhada, dependendo das escolhas dos livreiros. O mais certo é que os leitores acedam a pubicações (…) através da internet, por recomendação de alguém ou na banca de algum festival de edição.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Não fosse o vanguarda, ter-nos-iam confundido com outros colectivos. Mas aqui terminam as parecenças, e seguem-se cómicos.
Começamos pelo fanboy, versão farsty.
A banda desenhada (…) é um meio onde (…) existem propostas que conquistam leitores concretos que fariam qualquer coisa para conseguir uma certa obra.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Não faremos gracinhas além de reproduzir o excerto acima.
Avançando, sigam a lógica:
Finlândia, Letónia, Noruega, Portugal, não ficam a dever nada em termos de vanguarda à grande indústria europeia que é a francófona.
Do norte ao sul da Europa, os exemplos são muitos.
A ausência de Portugal faz-se notar.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Oops. É uma questão de mérito ou valor da obra? Faz-se a defesa da honra do convento:
Em Portugal, a cena editorial de banda desenhada é povoada por colectivos que não só têm semelhanças no modo de trabalhar com muitos dos colectivos expostos em Animal Collective, como fazem parte activa desta rede que mantém contactos e partilha projectos.
É possível, por exemplo, folhear um número da revista kuš!, da Letónia, apenas com autores portugueses e com selecção de Marcos Farrajota, um dos mais activos dinamizadores desta cena editorial a que poderíamos chamar de independente e o rosto mais conhecido da Chili Com Carne.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Cremos então que a distinção não se pode socorrer da falta de qualidade: não só esta parece estar a par com o que se faz lá fora, como parece que boa parte dela já se faz lá fora.
Nem de propósito e cruzando a comunidade, Pedro Moura publica hoje também uma crítica ao Sutrama de Daniel Lima pela kuš! (nem-de-propósito, dizíamos), quiséssemos nós mais exemplos de 'tugas em internacional. É-nos dito a propósito:
A distância entre os corpos (...) dos protagonistas e as metamorfoses dos objectos e espaços em torno tem de ser compreendida menos como momentos para criar redes simbólicas, passíveis de uma ulterior apresentação de significados do que uma plataforma para sensações ambivalentes e ainda mais distanciadoras da própria matéria de expressão.
Diálogos dentro de diálogos, portanto.
in "Sutrama. Daniel Lima (kuš!)" 23 fev 2017
Por tanto, nada ficamos a dever em vanguardismo, teimas houvessem. Mais nos informam que:
O autor português pretende antes despertar metamorfoses matéricas de não-continuidade, como se fossem possível tecer uma dinâmica musical com os lápis de cor.
in "Sutrama. Daniel Lima (kuš!)" 23 fev 2017
Ou
Devem[-se] preparar instrumentos próprios da leitura deste livro, e não expectativas concertadas com obras, ou pior, regras anteriores.
in "Sutrama. Daniel Lima (kuš!)" 23 fev 2017
Do traço que conseguimos discernir na amostra que acompanha o artigo - vide também na peça notíciosa do bandas desenhadas 4 fev 2017 *- lembra-nos um existencialismo programático de Fransciso Sousa Lobo com alguma descrição acessória a reforçar a impressão:
* Ou não: acontece a todos.
Análise lenta, dura e pesada sobre o estado de espírito de uma sociedade desencantada (...) (ou será antes a de uma pesquisa que tenta descobrir ainda os últimos laivos de encantamento que nela sobrevivem?) do autor.
Os meios esparsos para um maior controlo da sua expressividade e relação interna. Lima nunca procura meios de dramatismo ou de fogo de artifício, mas antes uma aparente simplicidade que explora antes a complexidade não-simbólica.
in "Sutrama. Daniel Lima (kuš!)" 23 fev 2017
...mas a impressão não resiste ao impresso e as "pistas para o trabalho de desarmadilhar o livro de André Lima" que nos chegam consegue fazer FSL parecer mais acessível aos mais distraídos, e Lima mais apetecível àqueles que menos desejam confundir o objecto em mãos com BD per se, "impedindo leituras naturalistas", "onde cada página surge como uma unidade de leitura, uma situação, que apenas por acidente cria a ideia de sequência e de coerência narrativa".
Exemplos dados e ombreando em vanguardismo com os nossos congéneres internacionais, a que devemos então a exclusão da produção nacional entre colectivos internacionais? Haja resposta -
E a resposta foi clara: "Não foi uma decisão consciente, simplesmente houve motivos de espaço e logística".
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
Ie, acabou a parede.
Quase podemos imaginar este diálogo entre Alberto García Marcos e César Sánchez, comissários:
- Será a mais completa retrospectiva de banda desenhada vanguardista europeia de sempre!
- Oy, é preciso ir comprar mais moldura…
- ´tão ‘tá feito, siga.
E seguiu. Apesar de notada,
A ausência de portugueses não perturba a essência de Animal Collective, cujo olhar passa pelos modos de trabalhar uma linguagem, a da banda desenhada, a partir de contextos bem definidos de produção editorial e distribuição.
in "Animal collective: a vanguarda da banda desenhada europeia" 23 fev 2017
- ninguém se perturba, trust us. Contextos bem definidos de produção editorial e distribuição não é coisa para nos afligir.
A terminar, não podemos deixar de registar igualmente, novamente, aquilo das coincidências: mesmo dia que SFC publica e exemplifica, PM sobrepõe, e obriga-nos à correlação de temas com autores nacionais a publicar kuš! para fora... O que nos estão a tentar dizer? Deuses, sejam metafísicos e enigmáticos o suficiente, dêem-nos um sinal!
Será esse o sinal de que a fuga estará sempre num “fora” absoluto à estrutura? E que repercussão terá essa leitura em relação à própria programação da banda desenhada? Toda a produção desta editora procura linguagens contemporâneas, contaminadas por práticas experimentais e bem distantes das fórmulas, géneros ou sequer expectativas da mais normativa narratividade desta linguagem. Não será esse um argumento adicional de encantamento?
in "Sutrama. Daniel Lima (kuš!)" 23 fev 2017
Estará a solução fora da estrutura? Com que consequências para a BD? Numa linguagem contemporânea, distante de fórmulas, sem expectativas, que se exclui à normalidade na construção da sua narrativa? Argumentativo até ao tutano?
Promissor, mas desencantados. Outro.
É precisamente a morte o que parece ser a única solução e saída desta inexorável equação enclausurada num espaço fechado. Ou talvez não, já que o “espaço de folheteamento” do livro permite que um derradeiro tiro de revólver se transforme no que parece ser uma ejaculação e esta num foguete de feira, dando a palavra a uma terceira personagem que até esse momento não tinha tido papel algum.
in "Sutrama. Daniel Lima (kuš!)" 23 fev 2017
Morte como única solução para escapar ao enclausuramento, talvez não, encontrar espaços no folhetar de livros, estes em modo de assalto, ejaculação, circo em festa, palavras a três, e uma personagem que se mantém de fora com o último dizer? Caros, pedimos enigmático, vcs nem sequer estão a tentar...