Título inspirado na mais recente crónica (*) de António Guerreiro onde contextualiza escritos de pseudo-filósofo franco. Exercício que como outros antes deste mesmo autor, recomendamos. Adverte-nos AG para os perigos do populismo cultural:
Banalização e degradação do pensamento, numa forma de discurso animada por propensões demagógicas que visam atrair o maior número de pessoas (...) produzido e estimulado pelos mesmos que, mal viram um pouco a cabeça (uns para a esquerda, outros para a direita), deparam com o monstro do populismo político.
in "O populismo em forma de oráculo" 19 maio 2017
* Nota 2 jun 2017:
"O populismo em forma de oráculo" de 19 de maio, e no dia seguinte construímos sobre o título como ponto de partida para outros tópicos. But tha fun plays on!, duas semanas mais tarde AG também explora sobre as mesmas preocupações em "A esquerda acelerada" 2 jun 2017. A ler quando acabares este :)
E os perigos do "charlatanismo" do "género oracular", para o qual estamos particularmente sintonizados:
Como todo o populista, este também é anti-sistema. Não fala a mesma linguagem técnica dos filósofos profissionais para evitar o jargão técnico. (…) O seu discurso "filosófico" é para ser compreendido pelos não iniciados, pelos afásicos e surdos para as coisas da filosofia, mas despertos para a tagarelice mediática (…) para partilhar no Facebook e para alimentar a cultura jornalística do clique.
in "O populismo em forma de oráculo" 19 maio 2017
A leitura merece a vossa atenção. Vão, nós esperamos.
Dito isso, nossa vez. Academia? Charlatões? Oráculos? Filósofos? E do tipo francês? Facebook? Tagarelice mediática? Senhores: isso, e muito mais.
Tratamos de uma trama transformada em tragédia que termina com a fatalidade do nosso herói e a elevação do vilão da história que lhe sobrevive à fama. Trataríamos somente a teoria materializada no que afecta às nossas teses –marxistas pró-capitalistas que abraçaram as novas tecnologias para derrube da sociedade-, mas a crónica de AG recorda-nos a necessidade de contextualizarmos este registo com um pequeno asterisco em jeito de introdução. E dá-nos o mote ao método:
O seu método, diz ele, consiste em ler toda a obra de um autor e tudo o que se escreveu sobre ele. Uma descarada mentira.
in "O populismo em forma de oráculo" 19 maio 2017
Se eles o dizem. Pelo que em concordância à natureza dOS POSITIVOS, recorreremos exclusivamente a um único artigo para extrapolar a literatura que se segue: resumimos de um long read do The Guardian.
Neste retrata-se um grupo particular de indivíduos que em tempos idos terá adivinhado o nosso presente, de tão absurdas e impossíveis que eram as suas linhas de investigação. Importam-nos estas últimas, mas falemos dos primeiros, primeiro. Centro de estudos sui-generis –a Wikipedia descreve-o de "student-run interdisciplinary collective" 2017- batizado de CCRU, "the Cybernetic Culture Research Unit" foi uma unidade de investigação da universidade de Warwick e entidade quase mítica de muito curta e atribulada duração. Ilações à vossa consideração, mas reza a história que para o seu final –
drifted (...) into a vortex of more old-fashioned esoteric ideas, drawn from the occult, numerology, the fathomless novels of the American horror writer HP Lovecraft, and the life of the English mystic Aleister Crowley, who had been born in Leamington, in a cavernous terraced house which several members moved into.
Shit u not.
I
"good drugs"
Há na peça referências a "good drugs", mas sobretudo sobressai desta uma atitude não muito tradicional em relação à academia. Que, obviamente, teve o desfecho que se adivinha.
[They] saw themselves as participants, not traditional academic observers. [As suas] gatherings [atraiam] "every kind of nerd under the sun: science fiction fans, natural scientists, political scientists, philosophers from other universities" but also cultural trend-spotters.
Even inside the permissive Warwick philosophy department, the CCRU’s ever more blatant disdain for standard academic practice became an issue. CCRU became a "very divisive" presence in the philosophy department. "Most of the department really hated and despised [them]"
A ponto de hoje só encontrarmos uma referência no sítio da universidade ao CCRU: uma tese de nome "Capitalism's transcendental time machine" 2000. Adequado em todas as frentes.
Descrição da dita por ex-membros e simpatizantes.
Ccru ... triggers itself from October 1995, when it uses Sadie Plant as a screen and Warwick University as a temporary habitat ... Ccru feeds on graduate students + malfunctioning academic (Nick Land) + independent researchers
Simon Reynolds
Ccru was an entity ... irreducible to the agendas, or biographies, of its component sub-agencies ... Utter submission to The Entity was key.
Nick Land
We made up an arrow! There was almost no disharmony. There was no leisure. We tried not to be apart from each other. No one dared let the side down. When everyone is keeping up with everyone else, the collective element increased is speed.
Iain Hamilton Grant
A atitude explicará em parte a razão pelo qual a seita passou despercebida entre "the media or mainstream academia". A outra razão também não é difícil de compreender: dificilmente, à data, se compreendia o que estes pretendiam. Tal como -arriscamos- as nossas próprias teses estão tão esticadas que poucos estarão ainda a seguir a nossa lógica, também então seria difícil reconhecer no emaranhado de teorias que os movia um fio condutor a qualquer fim concreto. Do seu registo de interesses:
In 1996, the CCRU listed its interests as "cinema, complexity, currencies, dance music, e-cash, encryption, feminism, fiction, images, inorganic life, jungle, markets, matrices, microbiotics, multimedia, networks, numbers, perception, replication, sex, simulation, sound, telecommunications, textiles, texts, trade, video, virtuality, war". Today, many of these topics are mainstream media and political fixations.
Uma listagem tão desconexa que não podemos deixar de tecer paralelismos aOS POSITIVOS. Mas o anedotário termina aqui. Aceleremos para a segunda parte: marxistas pelo capitalismo.
II
"eles já sabiam"
Do "accelerationism", movimento que recebe o seu nome de um romance de ficção científica publicado em 1967, onde algures um grupo de revolucionários tenta transformar a sociedade por meio da tecnologia. Apesar da associação do nome resultar de uma comparação depreciativa por um dos seus críticos esse é rapidamente adoptado e em seu torno surge gradualmente um corpo de literatura que revisitada à luz do presente teve a clarividência de descrever com –demasiada?- antecedência as tribulações recentes no espaço que cruza as nossas teses: tecnologia, analógico-digital, AI, bots, internet, cultura popular, sociedade, política e $$$. E punk, mas essa fica para o fim.
Mashup em resumo, segue-nos na lógica. Chamemos a esta secção "eles já sabiam":
Accelerationism has gradually solidified from a fictional device into an actual intellectual movement: a new way of thinking about the contemporary world and its potential.
Accelerationists argue that technology, particularly computer technology, and capitalism, particularly the most aggressive, global variety, should be massively sped up and intensified – either because this is the best way forward for humanity, or because there is no alternative. Accelerationists favour automation. They favour the further merging of the digital and the human. They often favour the deregulation of business, and drastically scaled-back government.
For decades longer than more orthodox contemporary thinkers, accelerationists have been focused on many of the central questions of the late 20th and early 21st centuries: the rise of China; the rise of artificial intelligence; what it means to be human in an era of addictive, intrusive electronic devices; the seemingly uncontrollable flows of global markets; the power of capitalism as a network of desires; the increasingly blurred boundary between the imaginary and the factual; the resetting of our minds and bodies by ever-faster music and films; and the complicity, revulsion and excitement so many of us feel about the speed of modern life.
E aqui entramos na política da coisa: a tech não é neutra, e os acelerados têm uma relação muito particular com o $$$: quanto mais capitalismo, melhor. Porque, de uma forma ou de outra, este permitirá acabar com a ordem estabelecida se lhe removerem as amarras. E melhora, populismo no seu pior:
Accelerationists always seem to have an answer. If capitalism is going fast, they say it needs to go faster. If capitalism hits a bump in the road, and slows down they say it needs to be kickstarted. Benjamin Noys accuses it of offering "false" solutions to current technological and economic dilemmas. With accelerationism, he writes, a breakthrough to a better future is "always promised and always just out of reach".
Na génese das teorias: filósofos. Franceses. Filósofos franceses desiludidos. E marxistas.
It was in France in the late 1960s that accelerationist ideas were first developed in a sustained way. Shaken by the failure of the leftwing revolt of 1968, and by the seemingly unending postwar economic boom in the west, some French Marxists decided that a new response to capitalism was needed.
Enter Gilles Deleuze e Félix Guattari, que em 1972 publicam um "Anti-Oedipus", no qual defendem que –
Rather than simply oppose capitalism, the left should acknowledge its ability to liberate as well as oppress people, and should seek to strengthen these anarchic tendencies.
Dois anos depois, outro "disillusioned French Marxist", de nome Jean-François Lyotard, reforça a literatura com um ainda mais provocante "Libidinal Economy" - que mais tarde o próprio haveria de apelidar de "evil book"- e ao qual se acrescenta por fim mais um "A Thousand Plateaus", novamente por Deleuze e Guattari, mais cautelosos na suas alegações pelo capital, admitindo que este "could suck society into "black holes" of fascism and nihilism" - o tipo de advertência que é sempre simpático meter na embalagem antes de comprares a ideia, convenhamos.
Mas como é da tradição no ocidente pós-Reagan / Thatcher, nada que francês algum alguma vez tenha feito ou dito depois desses dois jamais ganhou importância entre nós, e foi necessário esperar pela tradução inglesa dos escritos para novos desenvolvimentos.
For a tiny number of British philosophers, the two books were a revelation. "I couldn’t believe it! For a book by a Marxist to say, ‘There’s no way out of this’, meaning capitalism, and that we are all tiny pieces of engineered desire, that slot into a huge system – that’s a first, as far as I know."
A citação e excitação acima é de Iain Hamilton Grant, na altura um estudante na Warwick, o epicentro de toda a nossa história e onde o CCRU fixa o nosso épico à sua relação tempo/espaço. Da universidade:
Such exploratory philosophy projects were tolerated at Warwick in a way they were not at other British universities. Warwick had been founded in the 1960s as a university that would experiment and engage with the contemporary world. By the 1990s, its original ethos lived on in some departments, such as philosophy, where studying avant-garde French writers was the norm. At the centre of this activity was a new young lecturer in the department, Nick Land.
Do Nick e seus comparsas, entre os quais encontramos aquele que iremos seguir com mais atenção em futura crónica:
By the early 90s Land had distilled his reading, which included Deleuze and Guattari and Lyotard, into a set of ideas and a writing style that, to his students at least, were visionary and thrillingly dangerous. [Mas] Land was in some ways quite old-fashioned. His initial Warwick writings contained far more references to 18th- and 19th-century philosophers – Friedrich Nietzsche was a fixation – than to contemporary thinkers or culture. The Warwick version of accelerationism did not crystallise fully until other radicals arrived in the philosophy department in the mid-90s. Sadie Plant was one of them. Mark Fisher was another incomer.
É o Marco que nos importa -não é sempre?-, e terminamos a introdução com o que estes trazem às teorias de Land:
Like Land, Plant and Fisher had both read the French accelerationists and were increasingly hostile to the hold they felt traditional leftwing and liberal ideas had on British humanities departments, and on the world beyond. Unlike Land, Plant and Fisher were technophiles.
Ao $$$, junta-se a tech.
"We saw capitalism and technology as these intense forces that were trying to take over a decrepit body."
E não só acrescentam a dimensão tecnológica em acelerado, como, surpresa-bónus mas não acessório, trazem igualmente consigo considerações que hoje se reúne sobre a designação de "cultura popular":
Plant and Fisher were also committed fans of the 90s’ increasingly kinetic dance music and action films, which they saw as popular art forms that embodied the possibilities of the new digital era.
E por esta altura até os mais distraídos já perceberam o porquê do nosso registo. Mas, porquê ser subtis? Como tudo devolve de volta às nossas teses:
With the internet becoming part of everyday life for the first time, and capitalism seemingly triumphant after the collapse of communism in 1989, a belief that the future would be almost entirely shaped by computers and globalisation spread across British and American academia and politics during the 90s. The Warwick accelerationists were in the vanguard.
Então, eles, como nós, agora:
The CCRU’s aim was to meld their preoccupations into a groundbreaking, infinitely flexible intellectual alloy.
Dito isso, onde tudo se complica. Land e Fisher acabam por seguir caminhos muito diferentes e incompatíveis, como –me funny?- um Peixe em Terra. Land torna-se o poster boy dos grunhos, Mark reorienta-se à esquerda. Enter punk.
III
"a machine for countering pessimism"
Half a dozen years later, at the University of Western Ontario in Canada, Nick Srnicek, began reading a British blog about pop culture and politics called k-punk. K-punk had been going since 2003, and had acquired a cult following among academics and music critics for its unselfconscious roaming from records and TV shows to recent British history and French philosophy. K-punk was written by Mark Fisher, formerly of the CCRU. The blog gradually shed the CCRU’s aggressive rhetoric and pro-capitalist politics for a more forgiving, more left-leaning take on modernity. But he was also impatient with the left, which he thought was ignoring new technology when it should have been exploiting it.
Um aceleracionismo de esquerda parece surgir contra a sua natureza, o próprio Land o acusa:
The notion that self-propelling technology is separable from capitalism is a deep theoretical error.
Mas Land não é o protagonista da nossa história, a nossa atenção seguirá a derivação esquerdista na figura de Mark Fisher. A ironia é notada: marxistas desiludidos fazem a apologia do capitalismo dentro do qual alguns desiludidos por este último voltam-se novamente para a esquerda. Mark espelha uma sensibilidade em sintonia com o conceito de "modernidade alternativa" -cunhado pela primeira vez por Alex Williams, co-autor de um "Manifest for an Accelerationist Politics"- no qual se encontram referências a "reduced working hours" ou "technology being used to reduce social conflict rather than exacerbate it". Familiar? Srnicek e Fisher tornam-se amigos e fundam um "new political philosophy: "left accelerationism". Também estes publicam um manifesto em 2015, "Inventing the Future", e novamente neste encontramos ecos de tópicos que por aqui já tropeçamos: "an economy based as far as possible on automation, with the jobs, working hours and wages lost replaced by a universal basic income". Lembram-se?
Tecnologia. Não é. Neutra. O contraponto não podia ser mais exemplar, se Fisher é referência entre as nossas referências, Land torna-se citação recorrente do racista racionalista. Ou, aquilo do alt-right:
Since Warwick, Land has published prolifically on the internet, not always under his own name, about the supposed obsolescence of western democracy; he has also written approvingly about "human biodiversity" and "capitalistic human sorting" – the pseudoscientific idea, currently popular on the far right, that different races "naturally" fare differently in the modern world.
On alt-right blogs, Land in particular has become a name to conjure with. Commenters have excitedly noted the connections between some of his ideas and the thinking of both the libertarian Silicon Valley billionaire Peter Thiel and Trump’s iconoclastic strategist Steve Bannon. Since 2013, he has become a guru for the US-based far-right movement neoreaction, or NRx as it often calls itself.
Grunhos. Mas não é a primeira vez que encontramos esta relação entre teoria, filosofia, tecnologia, grunhos e futurologia. Ie, futurismos:
Celebrating speed and technology has its risks. A century ago, the writers and artists of the Italian futurist movement fell in love with the machines of the industrial era and their apparent ability to invigorate society. Many futurists followed this fascination into war-mongering and fascism. While some futurist works are still admired, the movement’s reputation has never recovered.
Sigamos pois à esquerda, na sua vertente "menos agressiva" e mais humana que já não procura a destruição mas a conciliação, onde niilismo concede à esperança:
Accelerationism is a machine for countering pessimism. In considering untapped possibilities, you can feel less gloomy about the present.
Ironia da pertinência destas teorias que trataremos na próxima ocasião, já que MF, após uma profunda depressão, suicidou-se em janeiro. Dos seus escritos e onde estes se cruzam às nossas teses, next.
They were plunging into something bigger than academia, and they did put their finger on a lot of things that had started to happen in the world. But their work was also frustrating.
- and after, I can teach u french philosophy...
- pass...