"Punk Comix", estudo com mensagem composta.
Marcos Farrajota anuncia na sua introdução a "Punk Comix" oferendas ao universo académico, jornalístico e de investigação, no estudo cruzado das duas culturas que dão título ao texto. Também OS POSITIVOS se inscrevem nessa senda - investigação punx et comix - mas com a óbvia vantagem de removermos das pretensões a supramencionada audiência - académicos, jornalistas, público, leitores- uma distinção que nos liberta de constrangimentos que poderão ter limitado o âmbito da proposta de MF - mesmo se vezes o seu "discurso rico e divertido, mas sobretudo vivo" sugira que o próprio rapidamente se desprenda dessas formalidades. Formalmente, a sermos picuinhas, esse é o primeiro reparo que fazemos ao seu texto: uma peça de análise que entre análises e revisões dilui objectivos em comentários e rasurados, a validez dos primeiros sentenciada pela subjetividade dos segundos, permitindo admitir que "se possa crer [n]uma perspectiva diferente, ancorada noutra experiência pessoal", cuja "claridade" e "abrangência" da conclusões aduzidas dependerá da fé com que cremos na homilia. E porque ninguém nos pediu, obviamente, arrogamos-mos de júri à avaliação da tese - considerem-no a nossa prenda para Marcos Farrajota et al, se a desejarem.
I
Intro
Não hesitamos recomendar a sua leitura a terceiros que se aventurem em desconhecimento de causa, mas simultaneamente não nos reserva as surpresas que desejaríamos pela descoberta de pérolas perdidas que nos permitisse horizontes mais amplos. Indiferentes à inclusão ou exclusão de uma qualquer obra ou autor particular, exercício que tende às preferências de cada qual, preocupa-nos a lógica da exposição feita, mesmo se a quase totalidade de exemplos retratados, nacionais e internacionais, sejam familiares aos que acompanhem a intersecção destes movimentos, e as nuances às quais MF empresta alguma cor do seu talento sejam-nos batidas a ponto de podemos questionar as conclusões alcançadas. Que, como jurados à causa - duplo intento - passamos a questionar no resto da nossa intervenção.
Conceptualmente, Marcos Farrajota seria a cereja no topo da nossa short list de autores possíveis à sugestão da escrita da história do punk na BD nacional - exercício distinto se realizado em sentido contrário: a história da BD no punk nacional, uma diferenciação que o próprio faz a páginas tantas mas infelizmente não aprofunda. A putativa escolha prende-se com a proficiência que lhe atribuímos no cruzamento desses universos, e às poucas alternativas capazes ainda no activo. Mesmo se numa realidade paralela a nossa dream team co-autoral produzisse uma versão alargada do livro com uma maior contribuição do baú de Geraldes Lino e consultadoria por Teresa Câmara Pestana por exemplo, MF continuaria a ser a nossa escolha cardeal para dar corpo ao manifesto.
Quiçá à razão desta nossa fome por conteúdo, o objecto final fica-nos aquém das expectativas - e descontem que tenhamos por hobby depreciar os seus esforços - porque torcíamos genuinamente por este seu empreendimento. Secções inteiras dos seus escritos inscrevem-se sem favores no cânone do punx/comix, e com suficiente "corta-e-cola" no excedente não envergonhará qualquer bibliografia na área. Na BD, Marcos Farrajota recorda diversas vezes o estatuto marginal da banda desenhada entre as artes e aceitação do público em geral, uma realidade que permite pontes óbvia ao universo dos fanzines e sua efemeridade, o contexto cultural que os origina e a sua relação ao punk. O DIY, e - e esta é especialmente digna de registo e voltaremos a ela com as tropas de choque- a sua relação de dependência à tecnologia:
Acredito que o Punk tem uma característica fortemente tecnológica
Uma relação que o autor aprofunda com o exemplo da música, novamente a merecer o cite directo:
Quando chegamos aos anos 00 a música já não se agrega em volta de grandes movimentos ou estilos (...) para passar a ser meramente tecnológica por causa do impacto que toda a cultura digital teve nos últimos anos da indústria fonográfica.
Páginas antes estabelece uma relação entre "o advento da máquina fotocopiadora" como fomentadora da auto-edição, páginas adiante regressa novamente à tecnologia quando trata do grafismo "sujo e bruto do Punk", e subsequente profissionalização da produção gráfica que o extingue ou reduz ao pastiche kitsch. A recordar, voltaremos aqui.
Igualmente a recordar como parte do enunciado que vos estendemos, o autor não ignora a abrangência maior do termo "Punk" e a distância que nos separa da sua origem. Registe-se, Marcos Farrajota opta correctamente por definir o punk pelas suas manifestações externas.
"Posso identificar estes nossos amigos de duas formas:
- pelos códigos estéticos, ou seja, pelo mimetismo que se criou em Londes e Nova Iorque e que definiu a imagem cristalizada e popular do punk;
- pela ética do DIY, ou seja, pela produção e vivência contra-cultural ou alternativa, em que cabem estilhaços do punk como o Straight Edge e Hardcore bem como movimentos Okupa, direitos dos animais e anti-globalização"
Códigos estéticos miméticos cristalizados de um lado - se quiserem, natureza morta-, de outro a ética contra-cultura e multiplicidade de movimentos que okupam as ruas. Nesse binómio o próprio MF tem o coração no sítio certo:
Prefiro o termo ‘underground’ para certas práticas que admiro ou que produzo. Tem um sentido mais lato do que o ‘Punk’, uma cultura que se cristalizou em dogmatismos que não me interessam.
Ora. Baseado em informação válida, possuidor das faculdades necessárias ao seu discernimento, MF sucumbe a uma miopia desmedida na análise dos elementos que o próprio reúne atraiçoado pelas suas linhas orientadoras.
São estas:
- Existem obras que tratam sobre o punk em Portugal?
- Que documentação apresentam essas obras sobre a realidade do punk?
- De que forma o punk é tratado nas BDs?
- Existem autores que foram/são punks?
- Havendo autores punks, haverá um estilo gráfico punk português?
Algo de dramaticamente óbvio falha à sua listagem mas para o compreendermos primeiro temos que compreender "punk".
II
"Punk"
Para uma apreciação que se pretende uma "pesquisa sobre o que conta a Banda Desenhada sobre Punk em Portugal", Marcos Farrajota confessa já várias páginas lidas que não se arrisca a precisar "punk", remetendo para o split que perfaz o livro, indefinição partilhada por outros autores que prosam no tema: "não nos atreveremos a apresentar aqui uma ideia de que o punk seria possível de definir." Volvido o livro, sobre um enorme cabeçalho "O que é o Punk?", responde-nos Afonso Cortez à sua própria interrogação: "não sou eu que vou responder". Esclarecidos. Porque ninguém se acusa, obviamente, novamente, arrogamos-mos à tarefa de definir punk antes de prosseguirmos: de nada.
O punk deve o seu contínuo reconhecimento e persistência a uma cultura de consumo que privilegia a sua fossilização em moldes que cada vez mais se confundem com uma grotesca distorção de um passado artificialmente preservado fora da cultura que o experienciou e lhe deu origem. Sem vírgulas: o castigo é justo. Mas despidos os formalismos, o punk continuou a evoluir como cultura viva, que não poderá mais ser reduzida à fórmula original sem uma dose desmedida de ironia entre aqueles que o pratiquem com intencionalidade. Regressaremos a esta distinção adiante para a plenitude das suas consequências e como elas - ou a sua ausência - implicam a análise de Marcos Farrajota. Antes, àqueles que nos retorquem "bollocks!", mashup por um punk old school, Joe Keithley, vocalista dos D.O.A., entrevista de maio/junho 2004, porque qualquer investigação precisa de um case-study.
Joe Keithley wasn’t able to follow punk rock as a teen: it hadn’t been invented yet. But a quarter century later, punk music and fashions are hardly as subversive - the accoutrements of punk culture are now 100% mainstream.
"I wanted to be hippie but that scene was dead. All those people were co-opted and had given up. My gang had heard about punk rock and thought it was just the strangest bloody thing. Then we went to see the Ramones. I was reborn when we saw this punk band. It was really ugly, snarling and unpleasant. It totally turned us on. I kind of learned to become a punk. But because so much of it is political, the grounding was there in high school."
While copying older punks is a rite of passage for the young rebels, 50-year-old punks adopting new teen looks seems, well, slightly sad. And now that the first generation of punks is about to hit retirement age, you just know it’s going to happen. "People who are middle-aged like I am should not go around pretending they are teenagers, (...) to get along in this life you have to adapt. I may not always be in a punk band or dress like this, but I will always be an activist."
in "Lords Of The New Church"
Evolução, e a sua distância às origens. Um processo que não nos é estranho, citamos da mesma entrevista outro excerto a propósito das identidades que se formam: estas podem ganhar contornos na oposição ao externo, não apenas na fidelidade ao interior/anterior:
In subcultures, it’s only somewhat important to look like other members of the tribe, people you admire. It’s more important to be different from people you don’t respect. A real member is defined even more by what they hate than what they love: Joey Keithley’s first original song was not called "Punk rocks!" but "Disco Sucks!"
in "Lords Of The New Church"
A leitura ponderada da seleção anterior permite já discernir as nossas próprias linhas orientadoras à definição de punk, mas sejamos "brutistas", concluamos a tortuosa definição de punk com total evidência, acompanhem-nos nos seus três estágios.
Antes, "Punk", versão dicionário: termos como "foolish" ou "nonsense" abundam, seguido de perto de "inexperienced young person" no sentido de "beginner" ou "novice". Igualmente, desvios somados, a "worthless person", "cowardly or weak young man", "often aggressive or violent young person", "criminal", "thug". Finalmente, mas nem de longe exaustivo na nossa selecção, entre presidiários, o punk é o "passive male homosexual" do par em relação. Relevante a desenvolver nas nossas teses: o "young" que tantas vezes aparece implicado no uso do termo. Relevante à presente discussão: cremos que quando Afonso Cortez enuncia que "nunca se ouviu tanta gente a dizer-se punk", excluirá grande parte dos sentidos anteriores - mesmo se o título de capítulo "vamos lá prá esquadra!" pareça agora mais suspeito. Tentemos então outra abordagem.
"Punk", pelos P+, crash-course para teens - aquilo do "young":
1. Canalhas, vândalos, hooligans narcisistas meninos da mamã. Note-se: intencionado como descrição una, pese as pausas que possam indicar maior variedade, lê-se em contínuo e sem dispêndio das partes a soma é maior que essas. Igualmente importante e repetir se necessário: abrange apenas a primeira-manifestação-da-primeira-geração - e todos aqueles que gerações acumuladas se contam entre os acólitos transformados beatos que se apressam a internar no seminário e benzer-se por dogmas: os punks do formol, circa qualquer década desde então, este e século passado. Sobretudo a esses devemos o cabedal, moicano, acessórios, o retrato do punk estereotipado, agarrado, criminoso, figurante para paisagens urbanas em decadência. À primeira reacção punk reservamos o desdém: numa escala de inadaptados que se estende entre o menino-da-mamã como o mais inócuo e o gang Baader-Meinhof no expoente oposto da violência contra o sistema, a expressão máxima deste punk contra o sistema consiste em… expressar essa máxima. Numa frase: "são as hormonas, estúpido". Esta é a geração do do-it-(to)-yourself.
Mas, dissemos, o punk evolui e transforma-se: o punk de cartilha torna-se inofensivo q.b. como se exige na admoestação ao consumo, e outras metamorfoses ocorreram que nos permite falar de outros punks sem as quais nunca OS POSITIVOS se reveriam nestes. Acusemos ou não a sua génese a um publicity stunt de marketing a capitalizar stocks no armazém -tecido, cabedal, metal, vinil, coleiras e cerveja-, o seu sucesso extravasa a intenção original: se jornalistas satirizam que punk é "’cabelos pintados de verde e alfinetes-de-ama espetados na face’ (...) dando assim directrizes que alguns chegam a seguir", bastará uma massa crítica de punks acreditá-lo como tal e adoptá-lo para conseguir uma apropriação cultural que lhe deslaça a origem e confere nova importância.
2. A feliz casualidade dessa apropriação é dupla porque a união de inadaptados e inconformados não tem apenas um, mas dois filhos bastardos, e juntos salvaram o punk da sazonalidade boçal da puberdade. À apologia do DIY, acresce outra, várias vezes subentendida na precedente mas raramente mencionada no seu contexto ou simplesmente ignorada de todo, cuja prática ou ausência separa o punk que nos importa do punk subordinado aos costumes - sobretudo aqueles que consistem na sua negação. Falamos de punk ideológico movido à acção, a vontade de agir sem necessidade de permissão -o supra propagado DIY- aliado à consciência de classe que no auge da sua escala tem a sua própria expressão nativa por terras da rainha: direct action. Se é certo que nem todo o punk professa a acção directa -e a esses podemos e devemos chamar "poseurs"-, ou nem todos aqueles que a praticam se consideram punks -mesmo que o sejam-, é no seu cruzamento que o punk se torna digno de nota. Da relação tratámos aqui, e a darem-se ao trabalho de nos quererem desmentir dêem-se ao trabalho de antes evitar dissabores.
Em curto, na predisposição para a acção abarcamos toda a carga política que acarreta e consequente ideologia que move o punk, sem a qual este seria indistinto de dandys, mais próximos de uma tendência de moda do que um movimento social, cultural, revolucionário.
3. Finalmente, um terceiro passo é necessário à problematização do punk, razão porque talvez tantos tenham dificuldade em defini-lo: a sobreposição do DIY com a direct action - em inglês para manter paridades...- é tanto mais evidente quanto menos este se reconhece no punk original, tão distante que está hoje da sua manifestação inicial. O verdadeiro espírito do punk responde agora por outras designações como black block, antifa, etc - ou não responde de todo, tão fragmentada -e cínica- é a sina dos movimentos em contra-cultura.
III
Formol-ismos
Contextualizemos. Pois ninguém nos pediu para o fazer.
O conhecido editor de causas bd-rasteiras não descura da relação entre punk e novas militâncias, mas despacha-as enquanto aproximações de movimentos com similitudes e não como novo estágio de evolução, uma inevitável convergência de tendências, cada vez mais divididas nos meios mas unas nos fins. Uma posição que denota invariavelmente a assunção do punk do formol como o autêntico, com enfoque no cadáver estético amarrado ao passado qual período histórico das artes entalado entre a pós-modernidade e qualquer outro, descurando o espírito deste, só materializável no desassossego a montante e nos actos a jusante. Em suma: uma posição que lhe nega quatro décadas de história, uma visão redutora que investe na romantização do punk como personificação da juventude rebelde sem o compreender como mais uma etapa transiente de correspondência temporal à circunstância que o originou. Fuck it, voltemos quinhentos anos atrás a jeito de exemplo:
Os reinos da juventude não são simples aglomerações de jovens frustrados que encontrariam compensações ao multiplicar as violências e os excessos de toda a natureza. Este olhar severo defendido pelos moralistas obstinados em fazê-los desaparecer ignora a sua profunda inserção na sociedade que os produziu.
Resultam de um acordo entre as faixas etárias masculinas para preparar melhor a passagem de testemunho às novas gerações. (...) Em aceitarem uma ordem social imutável, sinónimo para eles de uma longa espera, os rapazes solteiros mais velhos obtiveram o direito eminente a uma violência ritualizada, fosse ou não mortal. (...) A brutalidade desenvolvida não é unicamente compensatória. Tem em si uma regra de vida imperativa, indispensável para existir aos olhos dos outros, viver um dia plenamente e ser respeitado por sua vez como um pai que impõe a sua lei a todos. (...) Reinos da virilidade, os grupos de jovens recrutam todos os rapazes da paróquia, mas cindem-se em pequenos bandos segundo as ocasiões e as afinidades, e por vezes também em função da origem social. (...) Um novo membro, que não tem escolha para recusar a sua participação a partir da puberdade (...) inicia-se nas tradições ao fazer de sentinela para os mais velhos, levando-lhes -lhes as capas e armas, sofrendo ritos de iniciação que traduzem o abandono da infância e a entrada no estado de jovem masculino. Entre os seus pares figuram por vezes homens casados, particularmente os que estão no primeiro ano da sua vida conjugal e que ainda não têm filhos, sinal de uma passagem completa à idade adulta. As principais atividades dos participantes desenrolam-se num espaço e num tempo festivo. Ao fim do dia depois do trabalho, à noite, nos dias de festa e aos domingos, encontram-se para ir à taberna, para organizar jogos ou danças na praça, fazer coletivamente a corte às raparigas ao fazer serenatas debaixo das janelas delas, com músicos. Passeiam-se também pelas ruas e sentem-se suficientemente fortes para se aventurar em grupo até aos limites do território, para provocar os outros. (...) Os reinos da juventude são animados por um intenso espírito de rivalidade face aos seus homólogos. Quem os integra frequenta as festas de outras paróquias para dançar e tentar impressionar as raparigas que os rapazes do lugar defendem ciosamente. Qualquer fraqueza mostrada, qualquer debilidade tem consequências importantes para toda a comunidade [porque] os reinos juvenis ocupam um lugar primordial na aldeia. Ainda que resultem de uma longa marginalização dos solteiros e provoquem combates mortais entre eles, servem admiravelmente para reforçar a coesão social. São, com efeito, os guardiães das tradições, essencialmente no domínio que é objeto de uma verdadeira obsessão para os seus membros: o acesso às mulheres.
in "Uma história da Violência"
Portanto: aquilo das hormonas, estúpido. Fastforward algumas centenas de anos, uma sociedade medieval atravancada com uma revolução industrial que desenraíza da estrutura social fornadas de teens sem futuro, cada vez mais emancipados por uma crescente democratização de aparatos tecnológicos e um manancial de literatura -ie, informação- que a partir do Renascimento ergue o individuo acima da sociedade e à qual se acresce os escritos de um Karl Marx com toda uma escola posterior sobre essa dita sociedade...? Nigga pliise. Compare-se a realidade anterior, século XV e trópicos, ao recém editado "Mercy on Me" 2017, biografia ficcionada de Nick Cave por Reinhard Kleist, com excertos random da sua fase punk: impossível não reconhecer as semelhanças, impossível não compreender onde a força das diferenças libertam os nossos protagonistas das amarras da tradição.
"Mercy on Me" de Reinhard Kleist / clica nas imagens
MF reconhece uma natureza viva do punk por via das suas manifestações, e as distâncias que separam as nossas definições de punk são facilmente ultrapassadas por um enquadramento temporal à sua análise que lhe ditem um término. Em ambas as frentes, Farrajota é legítimo. Mas, e regressando à sua lista, a lógica das suas interrogações termina em:
Havendo autores punks, haverá um estilo gráfico punk português?
Senhores...? Não deveremos antes interrogar-nos se...:
Havendo autores punks, haverá BD punk?
IV
Dogmas Estéticos
MF cede a dogmas quando a sua investigação culmina na interrogação de "um estilo" em lugar de uma intenção punk. Um universo inteiro de consequências se derramam sobre as teses de Farrajota nessa pequena reformulação porque a) duvidamos da relevância de um, dois, três, vinte estilos gráficos, se o que lhes transversa é a intencionalidade da mensagem, sendo então essa o real foco de uma análise pertinente; b) o foco sobre um estilo necessariamente exclui os dois, três, vinte outros que não se restringem ao decalque de uma expressão visual originalmente condicionada por razões técnicas entretanto tornadas arcaicas e sem mais utilidade prática, reciclada hoje por nostalgias saudosistas (*) ou opção artsy desligada do seu manifesto ideológico original.
* Não vamos falar das opções estéticas do livro.
Esta equiparação subentende igualmente uma redução de "BD" a mero "grafismo", uma limitação particularmente penosa de assistir porque sabemos que Marcos Farrajota é senhor de uma compreensão aguda das várias componentes constituintes da banda desenhada. O próprio o demonstra quando a propósito de identidades nos adverte que não basta ver, é preciso ler.
Tivesse o autor explicitamente limitado a sua análise a um período histórico como Afonso Cortez o faz no seu título e apresentação, MF não precisaria de rescrever linha alguma para erguer a sua peça ao estatuto de referência incontornável, fora uma muito breve mas significativa correção no primeiríssimo parágrafo, "pesquisa sobre o que conta a Banda Desenhada em Portugal sobre o Punk antes da web" - destaque nosso.
Uma falta imperdoável porque Farrajota compreende a importância da tecnologia sobre os artefactos produzidos a cada época e evolução enviesada de ambos, duplamente indesculpável porque o próprio parece condenar o mimetismo cristalizado de opções estéticas rendidas ao imaginário da (indústria da) moda popular (*).
* Como dissemos, o seu coração está no sítio certo, é a cabeça que nos preocupa.
Farrajota reconhece igualmente a coexistência de outras identidades cruzadas ao punk e faz notar que este se tornou bastante mais difícil de reconhecer nos seus moldes primários via a miscigenação de estilos que resulta dessa diversidade de gentes. Considerações somadas, o autor é capaz de identificar no punk configurações mais diversas do que as reduzidas à caricatura do punk ’77, e sobretudo, especialmente, manifestações dessa cultura que já nada devem a alfinetes e colagens p/b fotocopiadas na refunda.
Mas -
Do topo dos seus esforços ocupa-se a discutir se existe uma BD com-a-aparência-do punk sem aprofundar a existência de BD punk.
…Fora um rápido interlúdio onde o faz, no qual inclusive enumera OS POSITIVOS a título de exemplo. Reforçamos: MF possui bases invejáveis à sua demanda, é a sua interpretação dessas que o atrapalha. Voltaremos a este ponto.
Feita essa breve referência à primeira possibilidade, a que nos parece verdadeiramente essencial ao estudo da BD e punk - mas somos naturalmente suspeitos da presunção-: se existe banda desenhada punk!, o autor hierarquiza-nos um itinerário cujas etapas, repetimos, se dividem em i) obras que tratam sobre o punk, ii) documentação de apoio, iii) tratamento dado, iv) quem é/foi punk e finalmente v) se "há um estilo gráfico punk português". No cúmulo, admitamos que existe um estilo gráfico punk português, mas essa qualidade não faz da BD, punk. Essa é, igualmente, a grande conclusão não concluída de todas essas interrogações: no cúmulo, é possível que existam obras que tratam de punk e não são punk, obras que apresentem documentação sobre punk que não são punk, que tratam o punk e nada devem ao punk, por punks que fazem BD western, sci-fi, goth-vamp, super-hero marvel-ó-belga menos punk, com uma estética punk que, em momento algum, passa por BD punk. Uma distinção relevante. Como -um nadinha de um pormenor- respondam ao enunciado de MF sem que, em momento algum, se destinem a punks. Sim, é possível.
O anterior "Mercy on Me" trata directamente sobre punk, sem no entanto ser uma BD punk. Noutros pólos, provavelmente sem consciência ou alarido ao caso, a Kingpin publicou entre nós há não muito tempo atrás o álbum de BD mais punk de todo o ano, sem que este trate de punk, mencione punk, pareça punk, ou venha de um punk: "Aventuras na Ilha do Tesouro" de Pedro Cobiaco, uma BD a entrar diretamente na tapeçaria dos artefactos com os quais se constrói uma cultura punk.
punk importado do Brasil: não é sempre?
Continuando de cúmulos, com esse exemplo esperamos demonstrar que a análise da relação de banda desenhada e punk deve seriamente elevar a banda desenhada punk - uma que trata de tópicos importantes a punks, dirigida a punks - como principal objecto de estudo e reflexão, sem que em momento algum se cinja esse domínio à "estética punk" - um grafismo a que somos contratualmente obrigados…?- ou, sequer, por hipótese, empregue o termo em momento algum - porque, já o dissemos, há punks demasiado punks para serem punks. A existência de BD punk é bastante mais abrangente à análise de BDs de pantomima punk, circa década de setenta ou catálogo da Zara estação outono/inverno. Mesmo nos moldes da sua hipótese -incorretamente formulada- e focado apenas em banda desenhada que trate sobre o tópico -indiferente que provenha dessa comunidade ou sequer se dirija a ela-, MF inevitavelmente deixará escapar obras que respondam às suas quatro interpelações iniciais quando elas não emanem a formol. Case-in-point: o digital.
V
Punk Helpdesk: how can I help u?
Seremos breves: nas nossas próprias teses mal começamos ainda a registar as primeiras notas neste tópico e podem encontrar dois anos de leituras empilhadas especificamente com esse propósito no sítio do costume. Mas para evidência das insuficiências do estudo em estudo, basta-nos uma das nossas questões prementes:
O punk morreu com o advento da web?
Ou este persiste online, muito mais difícil de acusar porque as fotocópias a p/b mal agrafadas não são mais o suporte de eleição? A acreditar na peça de MF somos obrigados a subentender que o punk não sobreviveu à digitalização dos meios de comunicação. Facto curioso, quando hoje é quase impossível compreender ismos culturais e as estruturas de poder sem as confrontar num plano tecnológico. Aquilo dos anacronismos: está o punk antiquado, ou estão vocês a ficar para trás?
Arriscamos, dizemos nós, que a procura por punks online com pressupostos da década de setenta não está votada ao sucesso.
VI
Investigação futura
Iniciámos esta entrada com citações alheias a MF e AC. São, de facto, retiradas da peça de Pedro Moura 2 ago 2017 na metade de Farrajota, onde, como esse, ronda sentidos que não nos exaspera de repetir, como na sua análise ao punk, que "se acaba por desdobrar em várias sub-sub-expressões, e muitos dos seus elementos acabaram por sobreviver ou mutar-se", razão pela qual, notemos, "possamos compreender que tenham alterado radicalmente os próprios processos de organizar os movimentos, modas, ou práticas das culturas jovens e subversivas", segundos antes de mencionar hegemonias sociais, seguido de Stuart Hall.
Tivesse PM desenvolvido esta sua linha de raciocínio teríamos a conclusão necessária à obra de MF. E no entanto, como Marcos Farrajota e sobre o mesmo tópico, sucumbe ao dogma.
Os estudos culturais encontram na cultura contemporânea a sua razão de ser e objecto de estudo, e derivam de uma afinidade original a disciplinas radicais de pensar as relações de poder e a estrutura da sociedade, cujos primeiros percursores estavam descaradamente comprometidos com ideias e práticas de esquerda, mutuamente influenciando e influenciados por movimentos políticos dessa inclinação, anti-capitalistas, igualitários, libertários, utopistas, democráticos, opostos ao neoliberalismo, seu principal adversário declarado. Até que, mercê do populismo de algumas variantes dos estudos culturais e algum academês acomodado se cruzam com novas teorizações, mais amplas e mais ou menos antagonistas às intenções originais de algumas das suas figuras-chave magistrais.
Mashup nosso, podem pesquisar a fonte (*):
* Aquilo da "investigação futura" era para vocês.
It is ironic then, that the 1990s saw cultural studies sweep through the (...) academy. By the end of the decade, what had been a fashionably cutting-edge but institutionally marginal discipline in the late 1980s had been fully established as a recognized field in institutions (...) taught at every level in its own right, with its own apparatus of journals and international conferences, but also informing the mainstream of new research and teaching in fields as various as sociology, literature, history and fine art.
At the same time the massive institutional success of cultural studies has involved not just an expansion of the discipline itself, but a great deal of exchange between cultural studies and contiguous disciplines which have borrowed from it: media studies, geography and sociology, for example, have all taken on board many of cultural studies’ concerns and approaches such that there is not much discernible difference now between much work in those areas and specialist branches of cultural studies. Cultural studies since the 1970s has drawn on continental philosophy for the formulation of its basic theoretical concepts, and the continuing exploration of different strands of philosophy, especially recent French philosophy, has become an autonomous project within cultural studies that is more-or-less devoid of explicit political motivation - although such work clearly shares the concerns of the new movements against neoliberalism, very little of it tries to engage with them directly.
Why did this happen? (...) Some actually see the radical left as having been lured into complicity with neoliberal hegemony by the offer of an amusing life of intellectual dilettantism (...) [a] shift from a situation in which explicitly political motives are driving those choices to one in which a more diffuse project of generally expanding the range of cultural studies’ possible objects, and responding to changes in the larger world and in the wider intellectual environment, is the driving force. So it is not the concerns of new or even existing political movements which is represented by such work, but a general effort to map the emerging contours of the present. The rise of digital culture, the globalization of world culture, issues raised by the urbanization of life on earth, multiculturalism, cosmopolitanism and their consequences, the emergence of new trends in music or fashion, and so on; these have been the types of new objects and issues to preoccupy cultural studies over the past decade or so.
Now, this can create an impression, to anyone who does not bother to read the work in question, that cultural studies has abandoned its political project and simply become a part of the culture it once criticized. Cultural studies is accused of having been reduced to the status of a kind of journalism which simply reports on the superficially changing world but does not show any desire to critique its fundamental structures of power.
Lido o artigo em questão, Pedro Moura não se debruça em quaisquer considerações politicamente motivadas ou socialmente comprometidas, não demonstra desejo algum de apreciar os fundamentos da tese, e o mais próximo de uma opinião crítica que lhe conseguimos recai sobre, uma vez mais, o formol, na forma de -
(...) questões estilísticas, desde o desenho, composição ou utilização de estratégias gráficas como a colagem. Neste último ponto, a rememoração do magnífico ‘Avé-Marias Rap’, de Diniz Conefrey, confirma que houve tempos em que se verificava uma maior investigação expressiva nesta disciplina, que não se tem repetido nos tempos mais actuais, apesar do aumento da visibilidade e produtividade.
in "Punk Comix/Corta-e-Cola. Marcos Farrajota/Afonso Cortez (Chili Com Carne/Thisco)" 2 ago 2017
Apesar do aumento da visibilidade e produtividade, verifica-se efectivamente que não se tem repetido nos tempos mais actuais uma maior investigação expressiva nesta disciplina. Fala-se de punk, falam-nos de arte: estudos culturais (des)comprometidos. Uma pena que a propósito do mesmo livro, duas vezes se caia no mesmo erro.
Nota:
Ao contrário do livro agora impresso, a que poucos acederão e pelo qual terás de pagar, a base deste seu texto está disponível online - aquilo do papel e do digital, et al.- com data de 30 junho 2015 no que julgamos ser o seu paper apresentado ao projecto de investigação KISMIF, onde podem até encontrar, imagine-se, uma bibliografia. Ao contrário do livro, e talvez porque esse texto na sua versão online procura responder directamente as directrizes da dita investigação, a sua leitura acaba por ser muito mais concisa e interessante. Igualmente entendido à luz dos mesmos constrangimentos, a mesmíssima estrutura não nos choca minimamente. Enquadramento do autor:
Conforme as preocupações do projecto KISMIF, tentou-se localizar tópicos que possam ajudar investigadores noutros estudos: o retrato da boémia ou ambientes ligados à cultura urbana em Portugal, identificação de punks ligados à música, bandas e concertos, códigos comportamentais e estéticos, convívio com outras tribos urbanas em especial com a cultura skinhead neo-nazi, comportamentos sexuais, utilização de drogas, movimento okupa e o “aging”.
Ie, sejamos claros, "BD" e "punk", para todos os efeitos, para consumo externo, academy oblige. Só não vos deixamos a ligação porque utilizam o nosso nome em vão.
book injuries won't break bones
Obviamente, falta agora corrigir numa segunda parte a segunda (*) grande falácia de MF: a sua opinião pessoal dOS POSITIVOS.
* A terceira foi pensar que não o faríamos. Voltaremos.