Journal for the Advancement of Portuguese Comics 2010-present, Summer, 2011, Issue 1
State of the Art: being a prick around arseholes
You and yo mamma Independent Scholar
O discurso especialista só se torna aglutinador de realidades quando consegue encontrar uma audiência que voluntariamente opte por fazer fé nesse simulacro ao invés de descobrir a sua verdadeira essência pela experiência directa com a mesma.
O especialista terá assim uma dupla conotação, dependendo da importância que atribui à sua própria fabricação: positiva, se através dessa construção - subjectiva como qualquer selecção o é - permite à sua audiência acelerar a sua própria vivência; negativa, quando esta não é equiparada à intencionalidade da sua audiência e no entanto apresentada como objectiva.
Independentemente das motivações por detrás desta rendição intelectual ao especialista, esta será tanto mais conseguida quanto este conseguir manter um discurso coerente que sustente essa artificialidade e lhe aparente uma camada de consistência, que torne esse jogo de sombras mais credível que a própria realidade. Tal apenas pode ser conseguido com a sugestão de uma separação entre sujeito e discurso, que permita a este último reivindicar uma existência sobrevivente ao seu próprio enunciador.
Nesse sentido torna-se óbvio que o crítico de arte não é, será, ou alguma vez foi, mais do que porta-voz das suas próprias vivências reflectidas no contacto com o trabalho dos outros, e não um tradutor de qualquer insondável verdade universal que apenas ele consegue extrair dos objectos em questão, graças a anos de eruditos estudos ou inspiração divina. As suas palavras não poderão sustentar a construção de uma framework que completamente reproduza o mundo que o rodeie ou eleve a sua adivinhação de tendências futuras ao estatuto de oráculo profetizante, apenas poderá em boa verdade ser coerente consigo mesmo na verbalização das suas impressões pessoais e prestar tais palavras aos ouvidos daqueles que com ele partilham não só da mesma vivência passada mas igualmente de uma pré-concordância pelos factos que ainda estão por acontecer.
De todas as áreas de especialização, aqueles que se dedicam à critica da arte - ie, dos gostos - serão sem dúvida os mais subjectivos, e quando se dedicam à arte dos outros, os mais dispensáveis.
Abordarei o resto desta crónica segundo a vertente positiva anteriormente enunciada, recordando-o e evidenciando-o: o discurso subsequente procurará constituir-se enquanto uma selecção consistente, coerente, credível, de um mundo de sombras subjectivo que, por vezes poderá sugerir uma realidade. É também, e em boa consciência o admito, dispensável.
Por embalo da recente exposição de BD no CCB não será necessário recordar novamente a envolvência específica da banda desenhada neste país. Diversas leituras foram feitas, discorrendo ora sobre as raízes históricas deste ofício na quota-parte que afere aos portugueses, ora sobre a actual visibilidade que o mesmo tem junto ao público em geral. A recordação histórica deriva da inclusão de duas escolhas na exposição, o peculiar estado de alguma arte pelas restantes. O tom da exposição e respectivos textos em catálogo amostram uma temática muito específica de banda desenhada, encapada genericamente pela designação de "de autor", que em diferentes graus é apresentada por contraste à outra banda desenhada, mais generalista.
Esta dualidade entre dois modelos de banda desenhada insinua-se naturalmente com a crescente consciencialização das diferentes naturezas que compõe o domínio, que entre outras consequências teve o benefício de elevar a banda desenha à qualidade de estudo académico respeitável. Nesse sentido, uma das suas primeiras conclusões, que de resto partilha da imanência que o estudo desta arte aproveita da outra das artes tida como populares - o cinema, vinga no axioma que se segue: nem toda a banda desenhada é arte. A fronteira entre as duas BDs não se tece ao nível dos géneros ou estilos, sendo-lhes transversal e de muito mais subtil identificação. Independentemente destes, e diversas vezes a propósito destes, a distinção faz-se no confronto infantil / adulto, cujas linhas de fractura não se tecem simplesmente na imediaticidade ligeira dos conteúdos versus a sua leitura em diferentes camadas de sentido ou da pura pornografia, mas igualmente nas regras de construção visual que compõem a hibridez deste meio gráfico e textual.
As duas bandas desenhadas – cuja caracterização depende da perspectiva analisada, outras comparações poderiam ser eleitas segundo outros pressupostos – invariavelmente produzem dois públicos diferentes. Ou, mais acertadamente, podemos afirmar que no respeitante ao país em questão, a banda desenhada genericamente aceite enquanto tal (comercial? infantil? de entretenimento?) produz – com um nível de sucesso questionável para padrões internacionais - o seu próprio público, enquanto a banda desenhada de autor produz… os seus autores.
Dependendo da natureza da interacção que se tem com a banda desenhada, o panorama nacional parece alternar entre o suportável e o deplorável, na justa medida em que consigamos identificar qual o papel que cada um desempenha nesse processo: autores e críticos tendem a estar entre os que emanam a última opinião, do outro lado os leitores tendem a suportar a banda desenhada que encontram nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais. A discrepância no julgamento é atribuível às expectativas daqueles cujo retorno do investimento realizado - seja material ou moral - carece ano após ano e acumula em prejuízos de valores – materiais e morais. Editor, autor ou crítico esforçam-se nas suas competências por erguer um mercado que todavia resiste aos seus melhores empreendimentos e consegue evitar materializar-se em números concretos, recorrentes, ou sequer dignos de menção. A angustia destes agentes é tanto mais sentida quanto é a sua convicção de que, pelas regras ou talvez mesmo contra estas, esse mercado se deveria prostrar à sua graça. Na extremidade oposta, os leitores aguardam por uma obra nacional que os entusiasme e quebre o estigma, enquanto lhes reconhecemos essa mesma exaltação por cartoons, comics, mangas, graphic novels, superheros diversos ou especificamente gauleses isolados numa pequena aldeia cercada de romanos: em resumo, qualquer tipo de banda desenhada internacional. Não menosprezando os anos de estratégias editoriais que se socorreram da importação em detrimento da produção local, a apetência por essas BDs não se justifica apenas pelo determinismo histórico dos condicionalismos comerciais das grandes editoras, como comprovam o emergir das novas tecnologias que permitiram escapar à uniformidade dos canais oficiosos da grande distribuição e aumentar exponencialmente o número de sítios alternativos dedicados à sua divulgação, sem que no entanto o mítico mercado de banda desenhada portuguesa se tornasse mais palpável ou menos evasivo como sempre foi de sua sina.
Finalmente, e para melhor compreender a caracterização do panorama bedéfilo nacional no que concerne à dualidade das duas bandas desenhadas, generalistas ou de autor, é necessário não esquecer a esquizofrenia de discurso dos agentes de BD nacional. Encarnando os que mais vocalizam a sua insatisfação perante fado que têm a braços, serão também os primeiros a refutar em uníssono a mesma constatação quando esta é apontada por elementos exteriores ao colectivo sancionado. As reacções melindram-se no enumerar de colectâneas, exposições, prémios ou publicações estrangeiras como legitimadoras do meio, na sua complexa história de artefactos e factos coloridos, nas crónicas, reportagens ou notícias que se manifestam nos media, algumas das quais inclusive até redigidas por jornalistas sem ligações aos autores. Logicamente, no seguimento de todo o seu raciocínio, não é a BD portuguesa que está mal, mas os seus leitores.
Encontramo-nos assim em posição para abordar a banda desenhada de autor.
Por oposição à banda desenhada genericamente identificável enquanto tal, sobretudo a destinada a um público jovem ou adulto, e cujos exemplos raramente ultrapassam a boçalidade da cópia desprovida de alma de estilos e géneros importados, a opção de alguns artistas nacionais vinga na desconstrução, e não na afirmação, das regras próprias BD. A distorção do objecto aproxima-o dos domínios de outras artes ao ponto de, por absurdo, se poderem catalogar igualmente sem o mínimo de resistência, de pintura, ilustração, prosa ou poesia. Na ficha técnica enumerado como "experimental", na imprensa favorece-se "alternativo". Em caso de dúvida ou excesso, "arte" justificará qualquer hesitação maior. A falta de interesse por parte do leitor será atribuída a sua "incompreensão" da "importância" da "obra".
Por melindre evita-se assumir em plenitude a denominação banda desenhada, pelo menos isolada de outros cognomes associados, fruto de anos de iliteracia geral que a conotaram com um público infantil, optando por a tranvestir de estereotipos que lhe aparentem uma maior dignificação. Essa renegação da BD enquanto meio de mérito justificado prolonga o esvaziamento do termo do seu sentido mais sério e impede a sua elevação à estatura que já goza em paragens internacionais. Ora ao estudo da banda desenhada não é alheio o mérito artístico que ela induz, mas também a sua importância na construção do tecido social e cultural. Fecunda no cultural studies, mas partilhada entre diferentes disciplinas, a multiplicidade de abordagens ao tema têm procurado mais a sua essência do que a sua miscigenação com as artes que a precederam, e enquanto académicos debruçam-se no apurar os seus traços constituintes, os nossos autores deslocam-se em sentido inverso e procuram retornar a banda desenhada ora à imagem ora à escrita, ou fundar uma nova corrente de artes plásticas. Fora notáveis excepções, a banda desenhada portuguesa de autor privilegia o exercício gráfico – a notabilidade das excepções prende-se justamente com o quanto, por oposição, são desprovidas de valor visual -, ancorando a defesa da sua investida na suposta narrativa que promove. Abstraindo-nos por momentos que uma pintura e uma escultura possuem de igual modo narrativas, devemos recordar-nos que a formulação do domínio em debate pressupõe fundamentalmente a narrativa em torno da justaposição sequencial de imagens e texto (cuja linearidade poderá aparentar e promover uma aleatoriedade, mas imperativamente fisicamente determinada). Apesar do gigantismo que esta definição abarca, já é suficientemente contundente para separar o prefixo banda desenhada do de autor em muitos casos. No entanto, defendemos uma ainda maior especificação do termo.
Arriscamos acrescentar que ao princípio fundamental da banda desenhada não podemos subtrair a sua dimensão popular, diversas vezes arredada da definição oficial do objecto em estudo, mas cuja complementaridade é necessária ou até mandatória para a apreender em toda a sua plenitude. Não tratamos especificamente da dualidade low & high art mas de estabelecer o relacionamento estreito que existe entre esta arte e a cultura popular, entendida tanto como das massas, como –e pun not intended com o termo anterior- acessível. Enquanto objecto de massas, não podemos sequer pretender iniciar a compreensão da banda desenhada abstraindo-a da esfera da cultura popular. Mais do que qualquer outra referência, a banda desenhada possui uma relação tão estreita com cultura popular que as duas são por vezes confundidas. Igualmente intrínseca ao conceito é a sua acessibilidade, em termos de custo mas igualmente de interacção: estes objectos devem por definição ser partilháveis e abertos. Assim compreendida podemos facilmente descartar outras condições que obedecem a linearidade de imagens sequências e texto mas que não são banda desenhada: um mural que reproduz de uma sequência retirada das Fantásticas Aventuras do Homem Aranha não é banda desenhada, é um mural. Uma exposição no Louvre composta da mesma sequência ao longo das mais variadas galerias e com indicações do trajecto de leitura não é confundível com uma banda desenhada, é uma exposição. Uma emissão televisiva composta unicamente de longas panorâmicas sobre as mesmas fatídicas páginas, não é uma banda desenhada, é televisão. Os elementos parecem ser os mesmos, o contexto de uso não, e a acessibilidade ao suporte – desde a sua possessão ao controlo da leitura ou iniciação / tipo de interactividade – são determinantes para sua a definição enquanto banda desenhada.
A obviedade desta leitura poderá parecer caricata, mas atribuímos-lhe um sentido muito mais profundo que o mero formato em livro (que, de resto, o sucesso dos webcomics desmentem ao mesmo tempo que se revêem na definição aqui sustentada). A leitura menos óbvia da importância da banda desenhada enquanto cultura popular conduz ao axioma que agora expomos: se não for lida, não é banda desenhada. A aparente simplicidade deste postulado poderá nesta circunstância provocar reacções objectas em espíritos de simplicidade equiparada, mas reforço que essa equiparação é falsa e que a hipótese é mais profunda que esses juízos. Uma abordagem completa da banda desenhada enquanto domínio de estudo não se pode limitar ao objecto em si apenas mas deve imperativamente incluir o leitor e compreender quaisquer mecanismos desencadeados externos ao objecto. E novamente deparamo-nos frente a uma lacuna entre a banda desenhada de autor e BD, que remove a primeira da esfera da segunda.
Vemos assim que a banda desenhada de autor, por reacção à BD imediatamente reconhecível enquanto tal, afasta-se da sua natureza e procura novas correspondências noutras artes em detrimento da sua própria. Acresce ao desprezo do que é o seu âmago a sua incapacidade e simultânea recusa em construir uma base de leitores suficientemente ampla para a retirar da alçada da peça artística que a promova junto às massas.
Assim abeirámo-nos das circunstâncias de coerentemente vergar a incorrecção da expressão banda desenhada my[__] de autor na perspectiva estritamente nacional e identificar os motivos do hiato entre a apreciação suportável dos leitores e a simultaneidade de opostos conviventes do deplorável + all's fine and dandy dos autores. Com esta constatação, aproximámo-nos igualmente da solução para o mesmo abismo: um igual esforço de condensação da BD nos seus próprios termos que produza objectos reconhecíveis enquanto tal e no contexto de cultura popular acessível e aberta seria o suficiente para estabelecer as tão desejadas pontes entre o interesse geral dos leitores e a vontade de criação dos autores.
No termo desta crónica não nos podemos permitir a encerrá-la sem primeiro recordar quaisquer leitores de relativa idade que nos tenham acompanhado até ao final da missiva com uma crescente satisfação pelo teor da exposição registada: as vossas bandas desenhadas infanto-saudosistas são infinitamente mais desinteressantes que qualquer alarde algum talento local possa congeminar.