(...) como a BD portuguesa e o seu riquíssimo historial de nomes, datas e acontecimentos, tudo desaparecerá in just one stroke *.
* Portanto, agora devagarinho: "just one strike" como em "um só golpe". Mas falamos de desenhar, substituis por "stroke", que compreende o golpe violento na mesma - "heart stroke" dos cotas ou outros com excessos de colesterol e gordurinhas - mas acrescenta-lhes a alusão ao lápis e ao pincel. Logo, e agora de uma só vez: num só bom rasgo de BD faz-se tábua rasa de todo o folclore comediano à data. O que é bom, e mau.
in http://www.ospositivos.com/2016/11/140-chars-ou-menos.html
O MAU
Mau porque, usando a expressão de um estudioso destas matérias, "recuperação da memória" é coisa que não aflige a prática do ofício entre os que o - uh - praticam. Escolhemos essa referência justamente pelo exemplo concreto: a propósito da publicação da colectânea Revisão no ano que passa. Qualquer pesquisa rápida pelo Google nos devolve praises tão petulantes que só pela pressa passam por jornalismo, e não nos é necessário percorrer o corpo da notícia para compreender a importância da publicação: a riqueza, variedade e sugestão de títulos que ressaltam à vista chega-nos para lhe cimentar um lugar de preponderância na história nacional dos quadradinhos:
“Revisão”, o melhor da banda desenhada portuguesa dos anos 70
in Observador 14 agosto 2016
“Revisão”: o melhor da BD portuguesa dos anos 70 em livro
in P3 7 julho 2016
Em ambos os casos acertaram com o título e a década, o segundo foi mais exacto ao também acertar com o formato, o primeiro acusa o público alvo ao optar por "banda desenhada" em extenso, o segundo está seguro dos leitores que tem em encurtar para "BD" apenas, mas poderá ser pelo limite de caracteres que - passe a ironia- a adição do "livro" impede. O "melhor" não foi contestado em lugar algum na notícia nem provado por órgão competente, e acima de tudo brincamos: não queremos fazer de um jornal a brincar e um jornal de brincar um espelho da imprensa nacional.
Ou, da Visão - referência duplamente deliciosa pela sobreposição quer do título, quer, se esta já não existir à data de publicação deste post, da mesma sorte que à primeira calhou-:
“De alguma forma, a Visão é quase o ano zero para a bd”, atira Farrajota.
in Visão 29 agosto 2016
Ou, a ler de terceiros as palavras de Farrajota, leiamos o próprio na descrição do produto:
"Esta publicação que fez uma ruptura com a BD tradicional portuguesa", a "icónica Visão, uma revista improvável (...) que se apresentava nas bancas com ar luxuoso, cores ácidas e brilhantes, temáticas políticas e libertárias"
in Chili Com Carne
Assim mesmo, do produto, e escolhemos as palavras.
A Revisão é-nos assim uma peça perfeita para ilustrar o nosso ponto. Diz-nos desta o anterior académico de coisas bedêfilas:
Publicada entre 1975 e 1976 (...) a circulação do seu nome era já mítica quando nos tornámos leitores mais intensos de banda desenhada (...) uma referência “viva” nas discussões sobre história da banda desenhada portuguesa
in LerBD 28 agosto 2016
Mas, ao mesmo tempo, apesar de se elevar como uma peça-marco (funny!) da bd nacional, é duplamente irrelevante. Ainda pelo mesmo autor:
Há toda uma geração (ou várias) que, por uma razão de falta de exposição, de curiosidade ou até mesmo de contínua distracção com as “novidades” que “apagam” produções sólidas anteriores (...) pura e simplesmente desconhecem na totalidade grande parte da produção de banda desenhada nacional
in LerBD 28 agosto 2016
A natural cassação do tempo limitou-lhe o impacto à geração que a originou e aos entusiastas que se dispõem à arqueologia, falhando em produzir -como, de resto, qualquer BD à data da escrita deste texto – legado algum que outros reclamem como influência.
Segunda irrelevância, atestada na própria introdução do livro:
Ao conhecer pessoalmente os autores para reeditar estas suas pérolas fiquei desapontado com os seus discursos relativos à BD (...) nenhum deles pensava muito sobre a BD, raramente discutiam esse assunto e os autores quase nem se conheciam uns aos outros
Farrajota in Revisão
Se os próprios não seguiam ou seguiram-se no tema, podemos desculpar os teens sobre a ignorância que os precede. E, recordamos, publicação mítica, referência viva, momento zero da BD nacional no momento zero da democracia em Portugal, repleto de temáticas políticas e libertárias. Zero e nicles.
Apenas um exemplo. Da referência feita, o desabafo mais geral e abrangente da realidade geracional que temos:
O nosso contacto com aspirantes a ilustradores e banda desenhistas um pouco por todo o lado, em contextos escolares, surpreende pela falta de contacto com a memória nacional
in LerBD 28 agosto 2016
O BOM
E assim chegamos ao bom: onde essa falta de contacto é positiva. Não queremos depreciar a bagagem, mas esta não parece contribuir para muito mais além de dar cor ao folclore - mais ou menos luxo, com ou sem brilho. Mesmo retrocedendo a outros senhores de outras épocas, tão dignos como os seus contemporâneos norte-americanos da era, hoje pouca ou nenhuma ligação têm à BD contemporânea - e pedimos desculpa pelo termo escolhido. É pois possível a qualquer arrivista à cena, em puro desconhecimento de causa, arrumar cena e causas para canto.
De exemplo, o que de mais relevante – para o grande público ie – aconteceu à BD nacional nos últimos anos: Pizzaboy e Vampiros, por autores que nos chegam de fora da BD, publicados por uma editora sem tradição de BD alguma no catálogo.
O que é bom. Não há amarras, não há limites, não há referências castradoras, não há escola, não à certos e errados, não há que copiar, seguir, emular, obedecer. Já aqui o citamos, merece recordar:
Trata-se de uma generalidade cultural – que o regresso ao passado é mais frutuoso a princípio, quando o ponto de interesse é a ideia, e não a técnica. À medida que o conhecimento se torna mais exacto, a originalidade declina; a perfeição aumenta à medida que a inspiração diminui.
in Barzun
rippado em http://www.ospositivos.com/2016/08/por-outro-lado-ha-o-tedio.html coincidência: agosto tb!
É mau que a banda desenhada nacional possa ser reescrita num só rasgo de uma boa obra porque toda a sua história assenta em obras que não lograram em produzir sucessão. É bom que, em tal condição, se possa num só rasgo quebrar dessa sina.
O VILÃO
-wha?