Perdoem-nos a confissão.
O debate que o Público conseguiu (inadvertidamente) causar entre a comunidade de interessados, quando optou pela designação de "novela gráfica" para a sua colecção de BD iniciada há dois anos, passou-nos ao lado: o termo era-nos tão decalcado de uma tradução literal estrangeira como as que encontramos diversas vezes naquela outra língua irmã –o brasileiro -, que arrumámos o tópico numa gaveta mental a que chamamos de "preciosismos dos cómicos" - esta é, afinal, uma comunidade muito dada a discussões de hermenêutica.
Há data vários textos fizeram o seu caminho ora defendendo, ora contradizendo a opção feita, e recomendamos a leitura das justificações dadas pelos autores que em um momento ou outro foram convidados a prefaciar a coleção: são fáceis de encontrar online e mesmo se fazemos depender a importância dos seus dizeres exclusivamente dessa associação, é um critério de selecção que pelo menos possui uma relação directa ao objecto e exclui as milhentas opiniões do Facebook – as quais, por razões técnicas, não rezará a História (*).
Pessoalmente, tornou-se uma expressão muda –"invisível" ?- para nós: por força do hábito – e somos criatura de hábitos vincados – o graphic novel precede a novel novela gráfica a ponto de nunca termos feito uso dessa última: quando a lemos ocorre um qualquer automatismo que a reverte à designação original antes mesmo de a processarmos. Somando a esse auto-correct o viver numa bolha pessoal – vide criatura de hábitos –, qualquer interação com terceiros sobre o tópico faz-se sobre a designação geral de "bd", ou quando muito, excepcionalmente, de "ban-da-de-se-nha-da" – assim, alongada e a desfalecer de cansaço pelo final pelo que raramente nos merece o esforço. "BD" para os amigos, momentos constrangedores exigem um "banda desenhada" desnecessariamente mais categórico, simplesmente "o livro" se a intimidade o permite: e desse modo vivemos os últimos dois anos protegidos do uso daquela expressão.
Até hoje.
Não seguimos a coleção assiduamente: a primeira série é talvez a mais completa mas longe de o ser, da segunda série devemos ter talvez dois volumes se tanto, desta terceira vamos no nosso quarto – contabilidade não confirmada mas é como a sentimos. Temos pois o hábito –isso- de pedir a dedo o livro –tu que nos lês: somos íntimos- que queremos, e no acto de o fazer ouvimos hoje pela primeira vez alguém nos replicar em alta voz a famigerada tradução.
Até um "banda desenhada" com um longo "aaaaaaaa" a morrer no fim de uma língua desmaiada no canto da boca e baba langorosamente a escorrer, os olhos revirados e a merecer um chapadão na cara para lhe sacudir o torpor teria sido menos estranho.
Por um lado, notamos o aspecto positivo da clarificação que se sentiram na necessidade de fazer: porque o Público publica tanta banda desenhada (*), é agora preciso ser explícito na peça que queremos.
(*) Aparentemente, o Público também publica uma série de super-heróis em collans mas não poderemos precisar: se a conjugação "novela gráfica" nos é invisível, imaginem a nossa capacidade de retenção da existência de uma série dedicada ao spandex.
Um bom momento para a bd na frente livreira - contrariamente a elitismos como os que descobrimos por via do Isabelinho, achamos que há espaço para todos, desde que não se confundam 14 sep 2017. Se o povo quer fantasias homo-eróticas, há que dar.
Por outro lado, para se evitar a confusão anterior, perguntam-nos se queríamos o spandex-em-collans, ou, "a novela gráfica".
Oy?!
Anjos morreram no Céu, e se não morreram, deviam. Hell, dêem-me uma machine-gun e vejam-me a metralhá-los numa orgia de violência: este já não é um mundo que mereça seres graciosos.
"Que caralho ‘tá-me este gaijo a falar...?!" Milésimos de segundos que pareceram uma eternidade –vide: mentalmente, estava no Céu a massacrar seres alados entre gargalhadas maliciosas de quem nitidamente acabara de ceder a uma espiral de demência. Havia ouvido pela primeira vez em uso corrente esse novo termo, destinado a criar barreiras entre mim e qualquer interlocutor que nos fale de BD nesses modos.
É de conhecimento geral a razão de ser por detrás da origem dos graphic novels, uma associação de ideias se perdeu na tradução – porque esta não se perdeu no caminho.
Nesse tópico, outra designação que nos é "muda" e já tivemos oportunidade de o estranhar no passado é, estranhamente, "OS POSITIVOS" (*).
* ou P+, ambas sequências de caracteres que por hábito interpretamos como símbolos visuais sem som associável, não como palavras a ler.
Nunca os chamamos pelo nome, e nas conversas são simplesmente denominados de "a tua cena". Os poucos que os enunciam denotam uma certa distância no fabrico espaço-temporal, e os que notam a hesitação no olhar enquanto tento perceber a que se referem rapidamente acrescentam "a tua bd".
Também aqui queremos declarar uma nova distinção – questões de hermenêutica, compreendam.
OS POSITIVOS não são mais "bd".
Os cómicos tiveram a sua oportunidade de os incluir na bagagem nacional de banda desenhada – e podem dizê-lo em alta voz assim mesmo, por extenso.
A "cena" é agora o zine. Repetimos: OS POSITIVOS na sua encarnação actual não são uma banda desenhada, são um zine de banda desenhada, um zine com banda desenhada, um zine sobre banda desenhada, e sobretudo, um zine de-com-sobre bd e outras merdas – e esse "e" é parte constituinte a merecer imensa consideração.
Fuck me se vamos viver num mesmo mundo que se confunde com novelas gráficas.