Bom para o Kask, mas isso lembra-nos uma história...
Do Edgar Allan Poe, por quem exemplificámos as vicissitudes do valor da escrita crítica versus o dito em saldo bancário: abrimos a "BANG! - a sua revista de fantasia, fc e horror" de novembro para aterrar na publicidade aos seus melhores contos, "ilustrados por 28 artistas nacionais".
Esperemos que entre as habituais rondas de divulgação ao dito alguém se debruce, por instantes que seja, nas possibilidades em análise quando um livro se anuncia nesse estranho arranjo de capa. Deixemos a outros o registo da psique que aflige a pátria, e arriscamos títulos alternativos a ponderarem na vossa apreciação que não seguem a lógica de 28 anónimos relacionados pelo cartão de cidadão:
- Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe ilustrados por 28 artistas canhotos.
- Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe ilustrados por 28 artistas casados.
- Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe ilustrados por 28 artistas de Caxias.
Mas ninguém estranha e não julgamos o livro pela capa. Pelo contrário, seguimos a julgar a revista folheando o resto dos seus conteúdos.
Para uma revista dedicada à fantasia, fc e horror, congratulamos a feliz previdência de incluírem algumas fragrâncias de banda desenhada: não damos por garantido que todos estendessem essa abrangência aos bonecos - apesar de nos parecer óbvia, há sempre o estigma.
De ilustrações várias em variadas páginas, inspiradas em BD, o tópico inicia-se quase de imediato com uma síntese de apresentação a Mosi / Joana Simão, e perto do fim conclui-se com uma curta por Miguel Monteiro – que, para os padrões da revista pode contar como longa: poucas peças alcançam o mesmo número de páginas e só o artigo de José de Freitas onde fala de si próprio na primeira pessoa consegue alongar-se mais além. Pelo meio, um texto de João Lameiras a propósito de não-sei-quem, mais umas linhas sobre o digital, internet e o apocalipse das revistas impressas. Para o fim, "A Liga Steampunk de Lisboa". Comecemos por eles.
I
Têm a nossa atenção por via do "punk" no título, na descrição sobressai um DIY. O resto é um desastre aflitivo, e não nos referimos apenas à demência do Cosplay, "um aglomerado de artes", "factores de desenvolvimento saudável da juventude", "uma aproximação de gerações (avós, pais, tios, etc)", yadda yadda yadda (citamos de um anúncio páginas antes). A foto para elucidação:
Respeitamos a privacidade dos miúdos: é uma fase.
Para DIY todos os boys seguem a mesma cartilha: chapéus, óculos nos chapéus por razões que só o chapéu sabe e o coração desconhece, bengala, pogo-stick ou afins – esperamos estar a demonstrar a nossa ignorância nestas matérias, é-nos importante que essa fique bem expressa-, etc.: estranhamos esta concordância de costumes que nos indicia uma bastardização do "espírito DIY (Do It Yourself)" em DBO, "Dont Be Original". Às girls coube-lhes o pior – mesmo se, como de habitual nisto do Cosplay, tudo se inocente na mais perfeita das ignorâncias. Novamente, atente-se à indumentária e pose. Pistola na mão, perigosamente próxima do rosto, só lhes falta soprar no cano dessa. A única excepção à regra está sentada à altura da cintura do rapaz que atrás de si mantém uma pose marota, bastão na mão, e perna arcada.
Podemos estar a over-analisar a imagem, mas compreendam: punk, duelos de chá, workshops de costura?! Não bastasse já o Cosplay ser por si uma capitulação à indústria do entretenimento, toda essa voluntariedade e energia numa idade que lhes é impossível arrancar um peido útil, desperdiçada ao serviço da celebração da máquina, não na sua destruição.
II
De desperdício, regressemos a João Lameiras. Prosa profissional, contador competente, crítica acrítica - porque, remetendo ao início, profissionalismo e competência ditam a crítica. Enquadremo-la no âmbito da revista: uma publicação gratuita de intuitos óbvios, os seus textos não contradizem intenções. Podemos ler toda a sua exposição do autor em questão como um crescendo quase mítico da ascensão e infabilidade de Scott Snyder (o objecto –sujeito?- da prosa), na qual se arrolam episódios biográficos do dito com os enredos dos seus argumentos. Um enviesado de nomes e datas e fantasias que nos criam a impressão de uma narrativa épica e a sensação que o autor estava destinado à grandeza desde o nascimento: tudo o que toca, qual Midas, transforma-se em ouro, ou, nas palavras de JL, "um sucesso". Enquanto crítica –nossa- apenas o excesso de adulação, como:
Como a maioria dos grandes criadores de comics americanos, também Snyder, apesar de ter um contracto de exclusividade com a DC, acabaria por publicar na Image, que é, indiscutivelmente a editora mais excitante da actualidade.
João Lameiras rebanha demasiados contenciosos dados às mais acesas discussões entre bedêfilos nesse excerto apenas, e apenas na "Bang!" se poderia passar tal afirmação com tamanha tranquilidade. Admitimos então que no contexto da revista, também o texto de JL é um sucesso mas, desconfiamos, não será por acidente.
III
E de tantos sucessos somos devolvidos a José de Freitas, que indiretamente também marca presença na crónica de JL com a mosca na parede.
Ainda hoje me sinto surpreendido com a completa revolução que a cultura pop operou nas mentalidades actuais. Se me tivessem dito, quando eu era um leitor de comics adolescente, que um dia os maiores blockbusters do cinema seriam filmes de super-heróis da Marvel e da DC, ter-me-ia rido quase histericamente. Se me tivessem dito que todos os anos teríamos um bom par de filmes de FC, que toda a gente saberia que nunca se deve chatear um wookie, que com grande responsabilidade vem grande poder, e que Harry Potter é leitura obrigatória para toda a gente, nunca teria acreditado. Há uma telenovela em que uma das personagens é um game designer, por amor de deus!
Por onde começar...
Não o tínhamos por beato a ver novelas e a clamar por deus, mas diz bastante que já ninguém se aborreça com representações de homossexualidade nessas e prefira à exclamação o game designer. Que porra é um wookie com um mau dia sabe deus, e também não acreditamos que o Potter é leitura obrigatória mas posso ter saltado o recado da escola. Finalmente e sobretudo: surpreendido, talvez. Desapontado, absolutamente. Continuamos a viver de uma cultura underground em vez de nos apropriarmos da cultura popular.
IV
E antes de nos acusarem de uma instrumentalização inconcebível do pop(ular) enquanto meios para fins, ou do total descabimento de tais manifestos entre as páginas de uma revista destinada a aviar stock, mordei a língua e atentem ao editorial desta, "o princípio da sabedoria", de Safaa Dib. Permitam-nos:
Ecologia, "não precisamos da ficção para compreender a urgência e a gravidade da nossa posição delicada como espécie humana neste planeta", seguido de extinções em massa e "os animais há muito que estão sujeitos e sofrem os efeitos do aquecimento global, mas foi preciso ter começado a afectar a Humanidade para que a realidade nos explodisse na cara". Literatura típica entre P+. Prossegue a directora editorial da Saída de Emergência desde 2008 com alterações climáticas em Portugal, os incêndios frescos na memória, "cenas dantescas de povoações e cidades rodeadas de fogo", e o apelo do governo que "iniciasse o processo de reformulação" da proteção civil. Conclui que "mundo está mais consciente" do "abismo" e "apocalipse ecológico", e que "fomos insensatos ao ponto de desprezar (...) aqueles que têm feito soar sirenes há anos", terminando com um call to arms: "arregaçarmos as mangas e começar a salvar a vida que nos foi dada nesta terra". Obviamente, a apologia da acção directa, e no processo o questionar do papel do Estado.
Senhores, isto passa entre os nossos leitores como o café da manhã. E não se despache o editorial de SB como reação afogada às calamidades recentes, uma revisão aleatória de editoriais anteriores incluem um "Pós-capitalismo" julho 2016, onde se trata sobre o Brexit, uma União Europeia disfuncional, globalização, o -
ressurgir de sentimentos nacionalistas por todo o continente motivado pelo crescente número de refugiados e migrantes. Enfrentamos uma União Europeia minada por uma elite ao serviço de bancos e corporações que passou a fazer do défice e dívidas soberanas um jogo onde nações são ameaçadas e chantageadas se não cederem à ideologia austeritária e neoliberal.
A "Barreira invisível" out 2015 arranca das eleições ao governo nacional:
Encontrando-se a nação num limbo ideológico fraturante, reflexo da eterna batalha entre a esquerda e direita. Há repulsa perante os partidos e muitos dos seus protagonistas estão descredibilizados. Mas é inegável que o voto na globalidade da esquerda expressa descontentamento e vontade de mudar o rumo.
...e poucos meses antes, "Despertares" mar 2015, Edward Snowden,
revelações a jornalistas sobre a extensão da rede de espionagem e os programas de vigilância montados pelo governo americano
... privacidade, cidadania, controlo estatal, whistleblowers, novas tecnologias, Cory Doctorow, inteligência artificial -
espionagem industrial e financeira, derrubar governos ou figura políticas incómodas, prender cidadãos incómodos, aniquilando qualquer pretensão à democracia.
Ou retrocedamos a 2012, Bang! #13, por nenhuma outra razão além do descarregar aleatório de mais este PDF do seu sítio oficial, com um "NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR" julho 2012:
Movemo-nos como seres sem coração, mente e consciência a cumprir padrões e regras ditadas pelos que nos antecederam. Seguimos o curso de vida possível e naturalmente esperado no contexto da nossa cultura e país. Elegemos líderes e escolhemos parceiros, criamos uma família, e algures ao longo deste percurso vamos deixando para trás muitas ambições e sonhos. A maioria das vezes, esses sonhos só estão ao alcance dos que têm maior poder financeiro.
Ainda nos querem debater manifestos?
V
Helás, nós o batemos, já que estes parecem cingir-se às páginas dos editoriais, pouco o suporta em conteúdo ou intenção. Felizmente, a Bang! tem igualmente argumentos de peso pela sua contínua existência: o seu preço.
E enquanto esta for grátis, leremos todas as críticas de João Lameiras com a curiosidade de quem olha para um mundo que nos é familiar mas simultaneamente inteiramente estranho. Enquanto esta for grátis, sentar-nos-emos à volta da fogueira e ouviremos todas as histórias que José de Freitas nos quiser partilhar. Leremos sinopses de quantos ilustradores nacionais conseguirem reunir. Como velhas beatas reprovaremos do topo da nossa altivez todos os punks, a vapor ou ciberianos, que conseguirem meter a fazer crochê em vez de cocktails.
A tal questão de expectativas cumpridas, e ao contrário de umas Selecções de BD de uns quantos anos atrás que se fazia pagar pela leitura, a Bang! cumpre com o seu propósito sem enganar os seus leitores. Haverá piores, publicações que não lhes daríamos o tempo mesmo que nos pagassem. Poderá haver melhores, se os GFLoys, Devires, Públicos e Levoirs, Kingpins – hey, vem a propósito do cosplay – e afins um dia decidirem juntar esforços e aplicar o mesmo formato à divulgação de excertos de BD a impingir no mercado, salteada com crónicas e críticas, e até uma secção de correspondência aberta aos leitores para que se possam arrepender de receber as nossas reclamações, que submeteremos em formato bd porque sim, nas quais nos queixaremos da qualidade da revista anterior, anunciaremos que a próxima é provavelmente uma merda, e sobretudo, que não devem desistir de as publicar. Se o preço é justo, nós lemos.