"Melhor-arsty-que-nunca-aconteceu"
Parte 3 de três.
Disclaimer. Nós temos que fazer isto, mas vocês não têm que o ler - afinal, a razão de ser está no mostrar a todos sem que ninguém o veja. We-evil!
Faltava-nos uma peça do puzzle, o zine impresso, e este já circula por aí. Avancemos, quando acabarmos de explicar o racional vais ter todos os talentos locais a correr para o computador para fazer igual, "só que" primeiro. Dizemos "primeiro" porque este é também um artsy-comix digno de experimentalismos à-la Chris Ware que não aconteceu - mas estamos a adiantar-nos. O que fizemos neste comix e o que nele leste não são a mesma coisa: nesse sentido é bastante contemporâneo, "imagem" e "texto" não coincidem. Mas como prometido, contra o nosso hábito de ficar a rir sozinhos para canto vamos partilhar a nossa lógica doida.
Quando o sentido não é desperto pela sua relação visual porque a sequência é demasiado óbvia, ninguém desconfia o que acontece entre páginas: Desta vez, contamos. Mas--- Com um twist. Sobre o twist... OS POSITIVOS: é complicado.
No tópico da estória, comics, art, o fim da narrativa pela (des)construção intencional do tempo-espaço...? Temos, e acresce aquilo do digital, só porque somos assim: manipulamos o formato -o seu suporte físico e digital- para transformar o seu sentido sem mexer no seu conteúdo.
Nota as possibilidades de disposição das pranchas: lado-a-lado com a) e sem b) margens, ou no seu alinhamento vertical c). Dependendo da leitura ocorrer no fanzine a) / telefone c) ou monitor b), segues uma sequência diferente – e essa sequência determina o sentido que fazes da estória. A sermos mauzinhos, podemos construir uma estória que se contradiz na sua sequência alternativa.
Quão divertido seria ter os nerds dos zines a ler uma estória e os geeks online toda outra estória, bastando o uso intercalado de diálogos não muito inocentes nas mesmíssimas pranchas, separadas por mais ou menos pixeis/cm?
O que nos atraiu neste jogo foi a simplicidade da proposta: uma manipulação ao mais baixo nível de adequação ao meio. Neste não se modifica o sentido da narrativa pela alteração do conteúdo da(s) prancha(s) ou sua sequência, mas a leitura que resulta do espaço entre páginas que respeitam a mesma sequência - horizontal ou vertical.
Apesar da facilidade de modificar programaticamente o interior de cada prancha reordenando as suas vinhetas por uma qualquer condição, essa é uma solução que não teria qualquer paridade com o fanzine impresso e por isso pouco nos importa.
Aos curiosos, fica um exemplo: as mesmas seis imagens são apresentadas em três sequências diferentes dependendo da tua resolução de ecrã.
Que BD leste? Depende: mobile | tablet | desktop. Se estás no computador, podes fazer o resize do teu browser para ver as três variações possíveis.
Podemos acusar o mesmo trick - comparação entre vinhetas na mesma página- numa escala maior -comparação entre páginas- mas dependemos a nossa experiência ao mais low-tech possível a roçar no quase-acidental: ie - resulta de mecanismos habituais do meio, não de uma engenharia técnica avançada contrário ao seu uso. Não renegamos a proposta anterior, tal como não renunciaremos a criar de futuro um gerador aleatório de comics como o genial http://explosm.net/rcg, mas o nosso brand particular de humor e especificidades intelectuais exige-nos que sejamos mais conscientes da relação digital-papel. Obrigados a uma continuidade tech tão descomplexa, é de uma simplicidade absoluta –we-genius!- depender o nosso kick da mais rudimentar das soluções: a adequação habitual do layout ao formato que o sustenta.
O spread ocupa duas páginas quando impresso, online e digital os conteúdos ocupam a área disponível ou são empurrados para uma pilha se essa não é suficiente. Sem reinventar a roda (como no exemplo atrás), podemos adulterar o sentido da narrativa guiando o leitor por percursos alternativos.
Com esse enunciado em mente, fora as habituais inner-jokes e outros sentidos escondidos que não se destinam ao vosso consumo, consideremos de volta a BD em mãos. O jogo é visual, depende das imagens, mas no texto deixamos diversas pistas para aquecimento. Comecemos por esse.
I
"diz que é uma espécie de prefácio"
- E o gaijo não pode merdar sem público?
- Pior, quer que lhe façam luz.
E termina com um:
- Bem, continuando -
Só neste diálogo, o resumo de toda a estória.
II
"settin’ up tha game"
- A banda desenhada contemporânea abandona o sentido literário de estória. Se quiseres podemos dizer que os comics são agora pós-narrativos.
- É, não quero dizê-lo.
A resposta do X é outra declaração de intenções bastante óbvia… Terminando o set up:
- Isso não quer dizer que não haja uma estória algures por lá.
- Ainda-que-a-maior-parte-das-vezes-provavelmente-não-haja-ou-que-valha-um-corno.
Perdão voltar a interromper mas--- hint hint ?!
- Mas o sentido tradicional de drama em três actos vai completamente à merda. Estes comics pretendem valorizar a sua autonomia estética em detrimento do texto. Digo texto no sentido d-
- Sim, certo, continua.
- Tão, quer-se negar a concepção de BD como literatura e no seu lugar explorar os mecanismos visuais que são específicos aos comics, informados de tradições que devem mais às belas artes do que à novela gráfica.
Senhores? Leiam de novo o diálogo atrás: já começa a ser mais óbvio? E a imagem sob o texto:
a long way // from home // in a park (nature tamed for consumption) // vandalized by urs truly?
III
"it's on"
Se as primeiras três páginas iniciais nada chocam com a tradição dos P+ fora algum shadding mais preponderante que o habitual -tech obliged!-, as restantes pranchas neste ponto em diante destoam das que precedem e prosseguem. Uma primeira pista visual que o jogo começou. Ou, como dizia crítico alheio:
Sendo a única cena que foge totalmente à câmara dos eventos do resto do livro, torna-se significativa.
Intencionalmente, estas páginas não possuem uma moldura para facilitar a confusão da sequência de leitura. Exemplo prático, com e sem margens generosas:
c/ margens
s/ margens
Poderíamos ter sido mais sacanas e utilizado as árvores de fundo para fazer a continuidade de pranchas como um fold-in da Mad, mas corríamos o risco de ser demasiado evidentes. Pelo contrário, escondemos as árvores atrás de diálogos e no seu lugar algumas declarações de intenções subtis que nenhum leitor incauto iria desconfiar:
O segundo spread tem igualmente pistas visuais semelhantes. Nas primeiras duas linhas X e M respeitam a orientação da cena, mas estão de costas um para o outro enquanto falam. No final da segunda M corrige o plano com uma indicação literal da sequência de leitura. Em resumo: algo aqui está fora de ordem.
Houvessem dúvidas, interrompemos mesmo as subtilezas e no terceiro spread duas mãos abrem wide open a planificação da BD.
E claro, recordando (*): na sua versão impressa ou no stack vertical do mobile, nenhuma destas comparações entre páginas sobrevive à leitura porque ela é naturalmente anulada pelo seu formato. Sweet!
* O mobile tem o bónus extra de as mãos empilhadas sugerirem o arrastar das páginas: um twist que nos venceu a ideia às alternativas reflectidas na altura. O zine impresso também teve direito ao seu quê de marotice: o centerfold "cai" exactamente no spread anterior, onde se passa do olhar para trás ao olhar em frente. That's how we roll, ya-muthas!
Na primeira prancha a palavra "o-r-d-e-m-!" esconde-se em letras garrafais, com duas perspetivas diferentes em cada coluna e uma aproximação de plano na segunda. Moral da estória: muda de perspetiva. Segunda página: o layout de toda a estória, começa com notas sobre manifestos em arte ao lado de $$$ e papel higiénico, pelo meio falamos de gaijos que -
- ... nem se dão ao trabalho de uma revisão
That be u-punx.
- ...e depois chamam-lhe arte
That be us.
E terminamos com um -
- ...importa compreender como se chega ao processo de composição e escolhas feitas
That be now.
Last-not-least: o leitor - "(quem?!)". Essa objeção devolve-nos à normalidade da história.
IV
"back to normal"
Dessa normalidade: não é segredo que X e M são adversos aos cómicos – preferem cortar um braço a entrar em discussões de BD com o V – e no entanto aqui estão eles em tão douto debate da dita.
Mas, aquilo dos "leitores" + reticências e entra V:
- Shh: ele vem aí, disfarça.
E foi aqui que disfarçamos tudo.
V
"hide that shit"
A chegada de V simboliza o fim de discursos experimentais, a normalidade é evidente no retorno às hostilidades contra os quadradinhos com requintes de vulgaridade. Estamos evidentemente de volta a territórios familiares. O texto é igualmente significativo:
- Qual é o vosso drama com a BD?
- Por onde começar? Talvez pela parte que lhe falta drama.
Mas significativo de modo que não podem imaginar ainda: quase-quase lá, apenas (*) mais uma peça -
- Alguém viu a minha BD?
- Não.
* A piada é tripartida: a) combinada com a falta de drama que nos ocupa, b) pessoal, não vou contar c) nessa página desenhei um piço que se ejaculou: conseguem encontrá-lo?
VI
não podes ver o que não está lá
O piço está lá: não precisas de procurar muito, agora que sabes aposto que já nem consegues mais deixar de o ver. Mas a razão porque este zine/web-cenas merece o prémio "artsy-que-ninguém viu 2018": porque algo efectivamente está em falta.
Esse algo é toda a intenção por detrás da peça. Não é a intenção que falta, a falta é a intenção. Depois de produzir todos os passos anteriores, o nosso gesto final de fuck you ao meio artístico: aumentámos as margens, carregámos literatura sem consideração à imagem, anulámos toda a possibilidade de uma leitura alternativa. O nosso statement :
Se não to dissessem, nunca o saberias.
A sua "contemporaneidade" não está no objecto mas no gesto por detrás dele. Aos gentios chega-lhes mais uma bd dOS POSITIVOS para ler, ainda se -novamente- sem qualquer ideia do que esta trata -outra vez. Familiar? Resta uma insuspeita tela em branco que apenas tu e eu sabemos ser cúmplice de maiores dramas. Se releres o comix agora já entendes o regresso do V (*) com outros olhos.
* A penúltima página com o "drama" no topo? Toda-uma-outra-cena que embrulhamos à mistura, mais extenso que a revelação de hoje: talvez outro dia...