Beja 2018 report
Preâmbulo.
Como prometido, Beja 2018, sempre no último momento possível. Nada mais saudável à apreciação de qualquer arte fora de tempo (*), fora de hype. Leiam os fanboys habituais para os reports que lhes toca, neste espaço ocupar-nos-emos das premências que nos são particulares.
Da viagem, talvez arrependidos de declinar à dragon lady a seu única extravagância: que lhe trouxesse um cartaz oficial do Festival. Mais interessado em folhear livros escusei-me quando abrandou o carro ao lado de um par destes pendurados em volta do recinto, mesmo se momentos antes ouvira Paulo Monteiro recordar o necessário desmanchar de toda a parafernália (**) findado o evento.
O arrancar - ou não - um cartaz de rua em fim-de-festa aterra-nos no cerne deste festival: um acto carregado de implicações que extravasam o fã-ndalismo. Da dualidade papel/digital - que manifestamente não inquieta os organizadores do FIBDB -, uma parte significativa do debate ocupa-se da natureza do primeiro proponente em par e do uso que se lhe dá. Se não vos é já evidente, a materialidade da BD exposta é única justificação possível à mostra visitada - embora outras razões possam haver-, em torno da qual necessariamente devemos discutir ideias base como i) a experiência colectiva, o ii) efémero e a iii) memória, iv) grandes formatos e v) o descontextualizar de peças - seja na forma de um cartaz que sai da rua para a parede da minha sala ou de pranchas intencionadas a habitar entre páginas metamorfoseadas em telas emolduradas. Arriscamos pois que quem não trouxe no regresso um cartaz do evento fracassou em parte em substanciar a essência do Festival - razão porque estamos apenas talvez arrependidos de não o ter feito.
*) Do perfeito deserto apenas um reparo. Do acesso quase exclusivo a que nos habituámos enquanto deambulamos pelas exposições: kudos à organização!, mas que à saída tenha de procurar a quem dar o guito pelos livros que levo um aborrecimento aos que giram calendários para evitar demais conversas com os nativos.
**) A quem possa reencaminhar aos responsáveis e apelando à sua generosidade: se resgatarem um poster da reciclagem prometemos bom lar com honras de moldura. Se assinado por Susa Monteiro devolvemos um par de zines com igual estima ao espólio da Bedeteca.
I
A riqueza das selecções do Beja – quaisquer que sejam os seus critérios – permitem-se sempre a um pequeno apanhado do estado da arte, exercício que apressadamente vos resumimos em duas observações. Primeira: diversas vezes em diversos percursos de diversos autores se formaliza uma tendência de carreira ou equiparado na academia / ensino superior / outros. Errr... hint hint. Segundo, da evolução dessa carreira: a comparação entre pesos consagrados da indústria dão-se a outras ilações que nos obrigam a manter língua apertada entre dentes para manter o report curto. De Jayme Cortez (n.1926) a Marco Gervasio (n.1976) por exemplo, as semelhanças e as diferenças importam-nos, como vos deviam importar. Da equiparação: ambos com editoras de renome no currículo, ambos cruzando ilustração e bd com outras indústrias de entretenimento de massas. Das diferenças: o primeiro cruza com cinema, o mass-pop de então, o último com a Rovio Entertainment, dos expoentes máximos do pop-mass actual, e toda uma indústria completamente inexistente há uns meros anos. Do que podíamos discorrer destas duas observações, para outra ocasião.
Mas do que não trata o festival na segunda parte, ocupemo-nos primeiramente do papel que cumpre. Necessariamente, papel, molduras, paredes. Não o desconsideremos, acabámos de confessar atrás que não somos imunes ao seu encanto – fosse o festival em épocas ou latitudes mais adequadas a gabardines não saíamos da Casa da Cultura com um cartaz mas sim uma prancha original de Max Andersson debaixo de braço.
Por todas as suas (in)conveniências a BD em suporte digital não pode competir com a BD impressa onde essa se esmera: dimensões. O par de pranchas iniciais do autor do "Bosnian Flat Dog" recebe o visitante em toda a glória do formato, a restante exposição em parede mantem o assombro. Um deslumbramento que acompanha outras BDs para outros gostos. Do atrás citado Jayme Cortez e o seu "Zodiaco" que em 2015 é reeditado em "edição de luxo e formato gigante" às comparações esboço / cor de Tainan Rocha, o detalhe dos pormenores é garante da presença da obra, Walter Benjamin teria aqui que abrir um asterisco em auras.
Yet, sem regressar à polémica da arte/museus/galerias, cabe-nos recordar que a BD não foi intencionada como exercício de contemplação passiva extraída de contexto, antes leitura pessoal inserida numa sequência - cânone que o Festival de Beja certamente não procurará desvirtuar. E nesse passe de magia, a suspensão de disbelief esmaga-se no peso da realidade: estas pranchas que encostam ao canto das vergonhas qualquer phone ou tablet são impressas em tamanho tablet se não lidas directamente em phones. Continuamos a crer na BD impressa, só não descuramos que esta agora é digital: os que recusam a última estranhamente negligenciam no papel o único formato que lhe confere vantagem: maior é melhor.
Talvez influenciados por ambientes plurais em grande formato, saímos de Beja com o VA "Gambuzine #1" 2008 e o VA"Nós Somos os Mouros" 2003.
Um festival como Beja recorda-nos igualmente pela excepção que o mercado dita outras regras: no festival o desenho é soberano, mas o argumento leva-lhe a melhor na edição final. O elevar da BD pelas suas pranchas-enquanto-telas um belief ferido nas intenções: formato belga ou americano todas se estreitam. Um pragmatismo que podemos comparar nos storyboards que se seguem, o primeiro por quem desenha, o segundo por quem escreve:
mais detalhe será desnecessário
Poderemos voltar a estes tópicos, continuando: o digital.
Sentimos as dificuldades do Festival a substituir pranchas por ecrãs, e é um erro supô-los tablets quando nos parece óbvio que se exigem 4k flat screen tv's para aqueles que laboram em plataformas comerciais. Segunda chatice, o fim do artwork original quando tudo é digital. Mas o sucesso de time lapses do Procreate ™ que abundam no Youtube ™ parecem provar que haverá quem fique igualmente especado em frente destes. E no processo, talvez, decifrar outras leituras da execução da obra.
o cartoon digital: it's all good!
II
Aos miúdos do amanhã que tropeçarem nestas linhas por qualquer disfunção algorítmica na promessa do estado da arte circa inícios da década de vinte deste século: pouco ou nada nos acrescentou o XIV Festival Internacional de BD de Beja em artes digitais. Entre os textos do programa e o Splaf! nº14 a esforço tropeçamos em algumas referências (muito, muito, porra mete "m-u-i-t-o!" nisso) soltas de campanhas de crowdfunding, blogs ou webmags, e dois pequenos inícios de conversa em mudanças de paradigma no i) "SmartComix para smartphones" por Nuno Pereira de Sousa sobre Fabio Celoni e na distinção ii) que Diogo Campos faz de Wargner Willian:
Wagner distingue-se dos demais autores contemporâneos brasileiros pela forma invejável com que gere a sua presença online partilhando a realização das obras, somando seguidores e divulgando de uma forma inédita no seus país cada livro de uma forma diferente e totalmente ajustada à obra que tem em mãos.
Este último o texto mais generoso na sugestão de implicações em redes sociais e novas tecnologias à produção da BD - o tal do self-publishing, contacto directo com o leitor, liberdade criativa e laboratório de experimentação em trial and error -, um "percurso de descoberta artística" cuja "tentativa de digitalização dessas ilustrações" impulsionam o autor a experimentalismos híbridos. De NPS em FC, a não menos importante mas igualmente sumária nota do -
projecto inovador de banda desenhada no qual os álbuns têm 13x8 cm, com as páginas idealizadas para serem lidas facilmente em publicações digitais num formato 16:9, através de uma aplicação própria.
Helás, sem desenvolvimento e órfãs de companhia entre a restante literatura providenciada pelo que, a crer na última edição do Festival de Beja, podemos ser desculpados de nos imaginar ainda em meados do século passado no que respeita à produção, distribuição e leitura de BD neste país.
Um erro que, cremos também, não se deve exclusivamente ao Festival em si.
não relacionado: calhou em leituras nesse dia
Procuremos em dois pólos dispares da BD nacional tendências. José Hartvig de Freitas, The Lisbon Studio, "o mais importante colectivo de BD e Ilustração de Portugal, uma reunião de talento criativo como talvez nunca tenha havido outra no nosso país", por onde passaram "a maioria daqueles que fizeram a história da BD na última década". Não terão sido pioneiros, mas os que mais visibilidade terão granjeado em webmags – até desistirem deste:
A partir de uma certa altura os membros do TLS quiseram que o seu legado fosse físico, sob a forma de livro.
Lamentamos a estratégia de exclusão onde deveriam complementar, acusamos a superioridade que atribuem ao livro se preocupados com legados quando este é cada vez mais um impasse que sensibilidades diferentes por vir obrigarão à revisão: querem que vos liste a quantidade de livros entretanto fora de circulação que poderiam hoje estar disponíveis à Humanidade se complementassem, não excluíssem? Em outras sensibilidades, Pentângulo #1, Ar.Co, Chilli com Carne, o premonitoriamente falecido MMnrg-cenas: "novos autores" e a "saudável partilha entre nomes consagrados e estreantes" de "alunos, ex-alunos e professores", que põem em prática "um modelo pedagógico que privilegia aplicações específicas e ilustração e banda desenhada em relação ao mercado editorial" e em conjunto "estas duas associações se juntam novamente para afirmarem os seus lugares próprios na produção da banda desenhada nacional". De webmags e afirmações em lugares próprios, temos que inserir aqui o manifesto de um dos seus personagens óbvios no tópico. Disponível em livro, só o lemos quando o disponibilizaram no Issuu oficial mais recentemente 27 maio 2018. O vosso resumo:
Marcos Farrajota in "MAGA - Colecção de Ensaios sobre Banda Desenhada e Afins" 2014/2015
Fiquem-se pelo resumo: pouco há a reter do restante texto que se segue ao cabeçalho inicial - não porque o lemos online mas porque qualquer informação digna de nota o evade. Ou, concedamos ao seu autor: alguns livros merecem o seu tempo: passado esse, não envelhecem bem e devem sair de circulação. E de modelos pedagógicos e relações ao mercado editorial, esses dois exemplos bastam-nos às conclusões.
O Beja BD só pode trabalhar o que lhe chega. Da nossa parte, pouco interessados em voltar tão cedo.