Sinto nisto o grande perigo do que devia chamar-se impiedade cósmica. O conceito de "verdade" como alguma coisa dependente de factos amplamente estranhos ao domínio humano foi um dos caminhos apontados até hoje pela filosofia para o necessário elemento de humildade. Removido esse obstáculo ao orgulho, está aberto o caminho para certa espécie de loucura (...) esta intoxicação é o maior perigo do nosso tempo e uma filosofia que mesmo inconscientemente contribua para ela o perigo de um vasto desastre social.
Bertrand Russell 1946 (escrito em 43?)
Sempre revoltados ao conceito-chave das nossas teses: autenticidade: eles tratam de verdades ou fakes, realidades que se escrevem com artifícios à inteligência onde a lógica se calcula por algoritmos pouco aborrecidos com o sentido da vida, mesmo se a vão descobrindo ao acidente: afinal, parecem ditá-lo. Terminamos de textos filosóficos e outras brevíssimas resenhas históricas e molhamos os pés em bd nacional neste breve interlúdio às inações obrigatórias da sazonalidade - também estas de uma impiedade cósmica - com tempo apenas para cites memoráveis cruzados à temperatura ambiente. Cumprimos missão com três amostras à silly season 2018, especial verão: todo o ano tem sido silly.
De conclusões em post anterior:
- Os populistas estão certos em enfatizar a agência potencial da multidão que produz a cultura popular, mesmo quando a consome.
- Mas se uma celebração dessa criatividade popular perde de vista sua dimensão inerentemente coletiva e se torna uma mera celebração da soberania do consumidor individualizada, então essa entrou em cumplicidade com a ideologia neoliberal.
Embebidos no espírito da época e de acessos limitados ao wi-fi alheio, destacamos (*) uma triangulação de textos que nos permite recuperar frentes habituais neste espaço: da BD tratem vocês, nós dos que se ocupam da BD, Pedro Moura, Domingos Isabelinho, Marcos Farrajota.
* Lá fora: a Publishers Weekly recorda-nos que a bd regressa em força com várias obras que tratam de impactos urgentes ao nosso tecido civilizacional, e no The Guardian fazem-se best offs no seguimento de outra revolução social: o Man Booker Prize nomeia uma dessas publicações à condição de literatura condigna. Com a pobreza de meios e imaginação que nos toca à escala nacional, listam-se romances gráficos traduzidos além das eternas boçalidades a dispensar com um swipe desinteressado pelo ecrã.
I
Domingos Isabelinho
Este crítico continua a recuperar online em espaço próprio antigos textos que se encontravam espalhados por diferentes poisos. Tendo descurado a sua leitura à data, (re)ler esses longos ensaios à luz duma realidade impossível de conceber quando originalmente publicados revela-se um exercício inestimável que acresce às suas intencões originais. O seu último a propósito de literários:
Such is the nature of truth; knowing only part of it we can't grasp... (...) I'm referring to the Eddie Campbell vs. Suat Tong or the "picturaries" (as I called them) vs. "literaries" controversy.
in "The Blind Men and the Elephant" 30 jul 2018
Demasiado extenso para um resumo quando se excedem os 40º celsius à sombra, despropositemos Bertand Russell para nossa impressão geral.
II
Marcos Farrajota
Em tendência contrária, Marcos Farrajota anuncia abandonar as interwebs e cingir-se apenas à palavra impressa. Consequência inversa, os velhos textos de Isabelinho ganham nova vida, os novos texto de Farrajota condenam-se à indiferença de quem os ignora:
Pois amigos, fartei-me de escrever para este blogue. (...) Então que sa foda, mais vale regressar para o mundo real, físico e analógico. (...) A minha participação no jornal A Batalha passou a ser mais do que umas BDs. (...) Yes! Devo dizer que estou excitado em voltar ao papel e cagar de alto para a 'net.
in "Uma Guerra perdida mas uma nova Batalha para vencer!" 1 ago 2018
Suspeitos em simpatia a projectos editoriais semelhantes - único queixume, o de sempre: que não hajam mais iguais - lamentamos que este romantismo tardio de MF por eras idas se minore num exílio auto-imposto completamente adverso à sua intenção declarada:
Esperava para já que houvesse mais participação na divulgação de objectos editoriais underground e que não fosse o único a fazê-lo. Isso poucas vezes aconteceu, quase ninguém contribuiu... Não se critica, não se pensa, divulga-se para ter mil "likes" e "followers" e está feito, é?
in "Uma Guerra perdida mas uma nova Batalha para vencer!" 1 ago 2018
Não, não é, mas Bertand Russell resume o essencial, e o vazio fica.
III
Pedro Moura
Peso pesado da crítica nacional, não é nesse seu chapéu que nos chega à atenção. De facto, em qualquer dos chapéus que descreve mas emprestado: destacamos a entrevista que o Bandas Desenhadas disponibiliza em final do mês passado a propósito de "Regressos", parceria com Marta Teives. Das demais vezes, o circuito nacional da imprensa especializada apresenta-nos a obra - vulgo divulgação ipsis litteris da nota de imprensa - para voltarmos ao seu conhecimento quando nomeados para um qualquer prémio em fim de quadra - a que se segue o esquecimento absoluto. A entrevista do BsDs uma pedra no charco que nos rememora mais vida além do papel que amarela à espera do ouro. Pela intenção, esperamos que faça escola. Se exemplo isolado, a lamentar. Se optimistas ou pessimistas por esse, o tempo dirá. Porque temos pressa, ouçamos Bertand Russell.
Bónus: da entrevista, impressões que só nos concernem. i) Positivo: o uso digital analógico que a autora expressa.
Começo por fazer estudos prévios de personagens e ambientes em folhas soltas ou em sketchbooks. A fase seguinte, dos esboços ou "lápis" da BD em si, é digital, pois assim tenho mais flexibilidade para redimensionar e mover elementos, apagar e redesenhar… Também posso verificar logo o espaço que os balões e legendas irão ocupar nas vinhetas, e trabalhar à volta disso. Recorro novamente ao analógico na fase das artes finais, em que trabalho com pincéis e canetas e tinta-da-china sobre papel, quase sempre sobre bluelines impressas a partir dos esboços digitais.
in "Regressos: entrevista a Marta Teives e Pedro Moura" 27 jul 2018
Do 2) negativo: a BD como produto, resultado de um processo, calculado e previsto.
Fui à "gaveta de histórias" (literalmente tenho um ficheiro com essa designação) e encontrei algo que tinha alinhavado para pouco mais que uma dezena de páginas. Como não era apropriado para o projecto em questão, voltou à casa de partida, mas depois comecei a pensar num outline para umas 30 páginas. (...) Finalmente, quando o Rui Brito [Polvo] convidou a Marta a apresentar sinopses, voltámos a esta história. (..) Não foi difícil pensar na adaptação, que alterou substancialmente essa ideia inicial, em termos de estrutura, abordagem e até humor. Depois de discutirmos certos pormenores da narrativa, vontades do que desenhar, falar de certos métodos, etc., reescrevi-a para as 60 páginas. Todos os passos do projecto foram sendo debatidos e reescrevi alguma coisa, inclusive rever os diálogos já o livro estava quase finalizado.
in "Regressos: entrevista a Marta Teives e Pedro Moura" 27 jul 2018
Talvez porque estamos de férias, mas queremos BDs cruas, impetuosas, imprevisíveis, impossíveis de empacotar: se escritas para consumo próprio óptimo, se ainda assim alguém as lê e lhes apertam um nó na garganta, melhor. Se pensadas e estudadas e e analizadas e storyboardadas com esse propósito, vamos deixá-las na gaveta estante para dias sombrios de inverno.
Fechamos o nosso périplo de dias ausentes e brevíssimo report para a história nacional de BD com as palavras do poeta, também essas de fim de crónica:
Perante tudo isto, a tagarelice humanista que administra lições parece uma representação cómica.
AG in "O humanismo e as suas lições" 3 ago 2018
Noutras frentes, e todas combinadas: o comix de hoje porque, aquilo do raw que clamávamos atrás, e porque niguém o precisa de ler.
half-full, half-empty? pallliiise...